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MOTILIDADE

  

     Para entender a motilidade do sistema digestório, vamos começar pensando como seria se o TGI fosse um tubo reto; a velocidade de passagem dos alimentos seria muito rápida o que não permitiria a completa digestão dos alimentos e a absorção dos nutrientes (então a função do TGI não seria executada adequadamente). Justamente por isso, o TGI se especializou, criando dobras, formando um longo tubo convoluto. Mas, um problema foi criado: como impulsionar o bolo alimentar ao longo de todo o TGI? E como controlar o movimento do conteúdo do tubo, de acordo com as necessidades de cada porção do TGI? A solução foi o desenvolvimento de um sistema com músculos que consegue propelir (empurrar) o alimento adiante e um sistema nervoso dentro da parede do tubo que controla e organiza esses movimentos (Figura 1). Assim, a motilidade é regulada para que o transporte dos alimentos ao longo do tubo ocorra na velocidade adequada, de modo que os alimentos que estão no lúmen sejam digeridos e absorvidos corretamente. Vamos ver mais detalhes do sistema nervoso e das fibras musculares que proporcionam esses movimentos neste capítulo.

       

      Além de empurrar (propelir) o alimento adiante, a motilidade propicia a mistura dos alimentos com as secreções exócrinas, como as enzimas, por exemplo.  Os movimentos da parede do TGI são importantes também para mover o conteúdo de modo a aumentar seu contato com a mucosa. Na mucosa, há enzimas que completam a digestão e transportadores que facilitarão a absorção do material digerido. A contração da camada muscular circular (interna) diminui o diâmetro do lúmen, formando anéis transversais de contração da parede do tubo digestório. A contração da camada circular é importante também para separar os órgãos do TGI através do fechamento e abertura dos esfíncteres. A camada muscular longitudinal (externa) encurta o tubo e sua contração é importante nos movimentos de propulsão, como a peristalse, que carrega o conteúdo ao longo do eixo longitudinal do TGI.

Figura 1: Corte transversal do TGI. Observe as camadas da parede do tubo, sendo a mucosa mais interna, em contato com o lúmen, e a serosa a mais externa. Entre as duas camadas musculares (circular e longitudinal) observa-se o plexo mioentérico, indispensável para o controle dos movimentos do TGI.

A musculatura que encontramos no TGI é constituída de músculo liso, com exceção da cavidade oral, da faringe, do primeiro terço do esôfago e do esfíncter anal externo – que possuem musculatura estriada (Figura 2). As fibras musculares estriadas, presentes no início e no final do TGI, permitem que se desenvolva controle voluntário apenas na entrada do alimento no tubo digestório e na eliminação das fezes. Na verdade, o controle voluntário ocorre apenas na mastigação, na primeira fase da deglutição (oral) e no controle do esfíncter anal externo, o que permite a continência fecal. O controle desse esfíncter se dá a partir dos dezoito meses de vida e pode ser perdido com o envelhecimento ou disfunções do sistema neuromuscular que acompanham algumas doenças, como o diabetes melito.

Figura 2: Tipos de músculo. Observe na figura que o músculo liso não possui estriações e suas células são fusiformes e bem menores do que as fibras musculares estriadas. As células do músculo estriado, além de possuírem listras ou estrias transversais, são alongadas e cilíndricas. As fibras do músculo estriado constituem o músculo esquelético (move o esqueleto) e o cardíaco (miocárdio).

       O músculo liso não apresenta estriações devido à disposição dos filamentos contráteis, em padrão mais irregular do que no músculo estriado; nas fibras musculares estriadas os filamentos se dispõem sempre no sentido longitudinal da fibra muscular formando os sarcômeros. No músculo estriado, a fibra muscular encurta pelo deslizamento dos filamentos (actina e miosina) no sentido longitudinal da fibra, encurtando o sarcômero. A contração do músculo liso é diferente da contração do músculo estriado – a célula muscular lisa se contrai como um todo, uma vez que os filamentos contráteis se fixam na membrana plasmática e nas condensações citoplasmáticas (corpos densos) e estão distribuídos no sentido oblíquo (em diagonal). Imagine quando amassamos com a mão um pedaço de papel; é mais ou menos dessa forma que ocorre a contração da musculatura lisa – ela ocorre em todos os sentidos da fibra (Figura 3). Para ocorrer a contração, deve haver cálcio (Ca     ), proveniente principalmente do meio extracelular. O retículo sarcoplasmático é pouco desenvolvido e se localiza perto das cavéolas, que são depressões da membrana plasmática onde se acumula o cálcio extracelular e vão originar vesículas de pinocitose.

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Figura 3: Contração do músculo liso se dá em todos as direções da fibra muscular.

     O mecanismo de contração da fibra muscular lisa também é diferente da fibra estriada. A fibra muscular lisa não possui troponina como proteína ligadora de cálcio e controladora da contração, pela exposição do sítio de ligação para miosina na actina. Na fibra muscular lisa, a proteína ligadora de cálcio é a calmodulina que ativa a cinase da cadeia leve da miosina (MLCK) e desencadeia a contração fosforilando a miosina. No relaxamento, a miosina é desfosforilada e o cálcio transportado para o meio extracelular ou para reservatórios intracelulares, voltando ao repouso (Figura 4).

Figura 4 A                                                                               Figura 4 B

Figura 4: Mecanismo da contração (A) e relaxamento (B) da fibra muscular lisa. Observe que na contração o aumento da concentração de cálcio no citoplasma inicia a contração através da sua ligação com a calmodulina e ativação da cinase da miosina. No relaxamento a miosina é desfosforilada e o cálcio é bombeado para o meio extracelular e para o retículo.

     A musculatura lisa das vísceras é chamada de unitária, pois ela atua como um sincício funcional. Como suas fibras comunicam-se por junções intercelulares do tipo comunicante, ocorre acoplamento elétrico das células (Figura 5). Com essa união elétrica, a estimulação que uma célula recebe logo se espalha por todas as outras, ou seja, o músculo responderá a estímulos de forma única, atuando como uma unidade, embora as células sejam independentes anatomicamente. Através dessas junções, há passagem de íons e de pequenas moléculas entre as células, servindo como canal de transporte de segundos mensageiros intracelulares, como o AMPc.

        Cabe salientar que o potencial de membrana das células da musculatura lisa do TGI apresenta uma peculiaridade bastante interessante: ele sofre oscilações continuamente - ciclos de despolarização e repolarização lenta. Esses ciclos de despolarização e de repolarização são chamados de potenciais de ondas lentas (ou apenas ondas lentas), pois possuem baixa frequência e longa duração e lembram a forma das ondas do mar. Como esses ciclos se repetem continuamente, também são chamados de ritmo elétrico básico. Esse ritmo elétrico foi atribuído às próprias células musculares, que teriam capacidade “miogênica” de gerar espontaneamente as variações de seu potencial de repouso (Figura 6). Hoje se sabe que quem gera essas oscilações do potencial elétrico da membrana da célula muscular lisa são as células intersticiais de Cajal (ICCs). Estas células se distribuem entre as células musculares lisas e funcionam como células marca-passo (similar ao funcionamento das células marca-passo que se encontram no coração). Essas células apresentam características de fibroblastos e se organizam em redes localizadas principalmente entre as células musculares e próximo ao plexo mioentérico, entre as camadas musculares circular e longitudinal.

      As células de Cajal estão conectadas umas com as outras e com as células musculares lisas por meio de junções comunicantes, permitindo o acoplamento elétrico entre elas (Figura 5). Assim, uma vez que as ondas lentas são geradas nas células de Cajal das regiões marca-passo do TGI, elas se propagam rapidamente pela rede de células de Cajal e pelas células musculares lisas. As células intersticiais de Cajal possuem receptores para vários neurotransmissores e hormônios (como CCK, por exemplo) e são inervadas pelo sistema nervoso entérico. A amplitude das ondas lentas e a força das contrações são reguladas principalmente pelo plexo entérico, que tem sinapses com as células de Cajal. Assim, essas células também atuam como intermediárias: recebem estímulos dos sistemas de regulação, hormonal e neural, e conduzem a alteração elétrica até a célula muscular efetora das respostas necessárias.

Figura 5: As células do músculo liso são unidas por junções comunicantes. Essas junções comunicam as células musculares permitindo a passagem de íons, o que as torna acopladas eletricamente. Observe as células de Cajal entre as células musculares e unidas a elas também por junções comunicantes. O plexo mioentérico faz sinapses com as células de Cajal e assim regula a atividade motora das células musculares lisas.

     As células musculares lisas possuem canais de cálcio dependentes de voltagem, os quais se abrem por estímulo da despolarização da onda lenta. De modo simplificado, pode-se dizer que a abertura desses canais permite a entrada de cálcio e levam à contração. Entretanto, as despolarizações regulares (ondas lentas) das células musculares do TGI não provocam necessariamente contração muscular, embora seja mais provável que os potenciais de ação da fibra muscular ocorram no pico da onda lenta, já que esse pico está mais próximo do limiar. Havendo potenciais de ação na fibra muscular, a contração gera maior tensão, sendo a força dessa contração proporcional ao número de potenciais gerados (Figura 6).

       O potencial de ondas lentas apresenta frequências determinadas pelos marca-passos característicos de cada região do TGI, sendo 3 por minuto no estômago, 12 por minuto no duodeno, 9 no íleo, 6 no cólon e 17 no reto.  Assim, as contrações musculares vão ocorrer em uma frequência que depende do marca-passo de cada região. Observe que a frequência de ondas lentas é maior no duodeno e vai diminuindo ao longo do intestino delgado, do mesmo modo que as contrações são mais frequentes no duodeno, onde ocorre a maior parte da digestão no intestino delgado, necessitando misturar o quimo com as enzimas, etc. Seguindo a mesma lógica, você acha que a alta frequência de ondas lentas no reto tem alguma função? No final deste capítulo, você terá certeza desta resposta.

Figura 6: Atividade elétrica e motora da fibra muscular lisa do tubo digestório. Observe que a atividade elétrica do potencial de repouso oscila formando as ondas lentas e no topo delas ocorrerão os potenciais de ação em ponta (limiar elétrico). Quanto maior o número de potenciais de ação maior a tensão exercida. Quando o potencial de membrana alcança o limiar contrátil, a entrada de cálcio garante uma contração fraca.

      Há dois tipos principais de contração na célula muscular lisa: a contração fásica, em que contrações e relaxamentos são cíclicos e rápidos, e a contração tônica, onde a musculatura permanece contraída por longos períodos. As contrações fásicas são determinadas pelas ondas lentas e pelos potenciais de ação que ocorrem quando o limiar elétrico é alcançado (figura 6). Por outro lado, há tensão muscular mesmo sem ter ocorrido potencial de ação, desde que o aumento das concentrações citoplasmáticas de cálcio gerado pelas ondas lentas chegue ao limiar contrátil, o que permite a manutenção de um nível baixo de tensão, chamado tônus muscular. As contrações fásicas são a base da peristalse e segmentação, movimentos que ocorrem no esôfago, estômago, intestino delgado e intestino grosso, enquanto as contrações tônicas se encontram no fundo gástrico e nos esfíncteres.

Você Sabia?

A falta ou disfunção das células intersticiais de Cajal gera alterações motoras gastrointestinais, uma vez que pode interromper o controle neural das contrações do TGI.  Em algumas doenças, se associa a disfunção dessas células às alterações motoras do tubo digestivo, como na doença de Chagas, gastroparesia diabética e cólon irritável. Também se encontra essas células na origem dos tumores estromais gastrointestinais, antes classificados como de origem no músculo liso.

      As fibras musculares lisas do TGI formam feixes que contêm centenas de fibras; esses feixes são inervados por um único neurônio do sistema nervoso autonômico, que possui pequenas dilatações contendo neurotransmissores (varicosidades) ao longo do seu axônio; dessa forma, um feixe de fibras musculares e o neurônio que o inerva formam uma unidade, como representado na figura 7, à esquerda.

Figura 7: Inervação das células intersticiais de Cajal e das fibras musculares lisas. À esquerda, uma unidade motora, com o neurônio autonômico e suas varicosidades (em amarelo). À direita, observa-se o sistema completo, incluindo o neurônio autonômico e seus neurotransmissores (em verde), o plexo entérico com receptores para esses neurotransmissores e fazendo sinapse com as células de Cajal, e estas, unidas entre si e com as células musculares, pelas junções comunicantes.

   

            Questão para pesquisar e pensar:

Se as ondas lentas são o marca-passo do sistema digestório, e são semelhantes aos marca-passos do coração, você acha que no coração também temos potenciais de ondas lentas?

                                                                                           

     É importante relembrar que toda a atividade motora do tubo digestório está sob regulação tanto do sistema nervoso autônomo, simpático e parassimpático, como do sistema nervoso entérico. O sistema nervoso autônomo, também chamado neurovegetativo, é considerado o controle neural extrínseco, enquanto o sistema nervoso entérico é chamado de sistema nervoso intrínseco, incluindo os plexos mioentérico, submucoso e outras redes neurais presentes na parede do tubo digestivo. Observe na figura 7, à direita, que se forma um sistema integrado, em que o neurônio autonômico libera neurotransmissores no plexo entérico, e este fará sinapse com as células de Cajal. Como já vimos, as células de Cajal geram as ondas lentas que serão transmitidas para as células musculares e toda atividade motora vai acontecer a partir dessas ondas. Assim, neurônios entéricos, hormônios, parácrinos e agentes inflamatórios vão modular a atividade motora alterando a amplitude e frequência das ondas lentas.

     Na Figura 8, observa-se a relação entre esses elementos reguladores. Os estímulos originados na parede do TGI são detectados por receptores conectados aos plexos e estes podem gerar uma resposta relacionada a um reflexo local, independente do sistema nervoso central. Isto se aplica também a outros plexos intramurais e a respostas secretoras e motoras. Alguns desses estímulos chegarão à medula espinal, caracterizando os reflexos centrais, envolvendo a participação do sistema nervoso autônomo, simpático e parassimpático, no controle da atividade motora.

Figura 8: Regulação neural da atividade do TGI. Observa-se que os reflexos locais envolvem integração nos plexos e os reflexos centrais necessitam de intervenção do SNC.

        Agora que já aprendemos um pouco mais sobre as fibras musculares lisas do TGI, podemos estudar como funciona a motilidade e sua regulação em cada região.

       A motilidade do sistema digestório inicia na boca, com a mastigação.  A mastigação é o ato de morder e triturar os alimentos, iniciando a sua digestão mecânica, além de misturar o alimento com a saliva, o que inicia a digestão química e torna a consistência do bolo alimentar adequada para que este seja deglutido. A mastigação é um processo complexo que envolve muitas estruturas, como a língua, bochechas, palato, articulação temporomandibular (ATM), músculos da mastigação e os dentes.

 

 

          Observe essas estruturas no vídeo

 

     A presença do alimento na cavidade oral estimula mecanorreceptores que iniciam reflexos coordenados no centro mastigatório no mesencéfalo, região do tronco encefálico, no sistema nervoso central. A partir do centro mastigatório, a via eferente constituída de vários nervos cranianos (principalmente o nervo trigêmeo, mas também facial, hipoglosso e vago), que coordenam os músculos mastigatórios, tornando a mastigação um ato reflexo. Ou seja, a presença do alimento na boca estimula de forma involuntária os músculos da cavidade oral, para que a mastigação seja iniciada. Entretanto, a mastigação pode ser voluntária e sobrepor-se ao ato reflexo, de modo que podemos decidir quando iremos mastigar e a quantidade de vezes. Porém, na maior parte do tempo, a mastigação ocorre sem que precisemos participar conscientemente.

 

 

         Atenção! Todos os músculos envolvidos com a mastigação são esqueléticos, porém realizam movimentos sem que tenhamos que ter uma ação voluntária para isso. Cuidado com aquelas classificações que dizem que os músculos esqueléticos são sempre voluntários!

 

        A mastigação envolve a ação de músculos da mastigação, que se encarregam de abrir e fechar a boca, mas também da língua, que leva o alimento de um lado a outro na boca e ajuda a misturar com a saliva. Claro que não podemos esquecer os personagens principais, os dentes. Entretanto, a presença dos dentes não basta. É preciso que ocorra uma boa oclusão, que garante que haja um encaixe perfeito entre os dentes superiores e inferiores. Outros movimentos da mandíbula importantes são a rotação, a protrusão, o movimento lateral e a retração. Os principais músculos da mastigação, que realizam os movimentos da mandíbula, são o pterigoideo medial, o pterigoideo lateral, o masseter e o temporal. Todos são bilaterais.

 

 

             Reveja a localização desses músculos

        Quando a mastigação conseguir transformar o alimento em um bolo pastoso que pode ser engolido, a língua separa parte desse bolo no seu dorso e a ponta da língua pressiona o palato duro. A partir deste momento, iniciamos a deglutição, ou seja, a passagem do bolo alimentar da boca até o estômago. Veja na Figura 9 a localização das principais estruturas envolvidas na deglutição.

Figura 9: Estruturas anatômicas envolvidas na deglutição.

       A deglutição (deglutir = engolir) dura em torno de 10 segundos. A deglutição é dividida em três fases: oral, faríngea e esofágica (o nome de cada fase corresponde ao órgão em que o bolo alimentar se encontra). A fase oral (que é voluntária) inicia com o final da mastigação, quando o bolo alimentar é empurrado pela língua contra o palato duro (Figura 10), onde se localizam mecanorreceptores, os quais serão responsáveis por iniciar o reflexo da deglutição. Uma vez que esses receptores sejam ativados, junto com outros localizados na orofaringe, inicia a fase reflexa da deglutição, que corresponde às fases faríngea e esofágica. Isso significa que não poderemos interferir voluntariamente a partir desse ponto (Não há como decidir desengolir!).  

 

             Questão para pesquisar e pensar:

Qual o papel da gravidade sobre a passagem do bolo alimentar da boca até o estômago? É possível engolir de cabeça para baixo?

 

        O reflexo da deglutição é coordenado pelo centro da deglutição, localizado no bulbo e ponte, próximo a outros centros reguladores, como os centros respiratórios, por exemplo. Essa localização anatômica é importante porque a deglutição deve ser bem coordenada com a respiração, a qual é interrompida no curto período em que o esfíncter esofágico superior permanece aberto (1s), evitando que a pessoa se engasgue. A deglutição também é coordenada em conjunto com a fala, o riso, o canto, etc.

A deglutição envolve muitos músculos da cavidade oral, faringe, esôfago, esfíncteres, chegando a cerca de 30 músculos, os quais são regulados por vários nervos cranianos, dependendo da fase da deglutição, especialmente os nervos trigêmeo (V), facial (VII), glossofaríngeo  (IX), nervo vago (X), acessório (XI) e hipoglosso (XII)  e os primeiros nervos cervicais.

 

 

             Você lembra o que acontece quando alguém conta uma coisa engraçada enquanto estamos comendo e o riso coincide com a deglutição?

Figura 10: Fase oral da deglutição. Observe a ponta da língua sendo pressionada contra o palato duro.

Uma vez iniciado o reflexo, o centro da deglutição coordena uma onda peristáltica na orofaringe, empurrando o bolo alimentar em direção ao esôfago, ao mesmo tempo que realiza outros movimentos com o objetivo de impedir que o bolo alimentar entre na nasofaringe ou na laringe e traqueia. Para impedir que o bolo alimentar se desloque para a cavidade nasal, o palato mole é “puxado” para trás e para cima, fechando a entrada da nasofaringe. Para evitar que o bolo alimentar entre nas vias respiratórias, a laringe é “puxada” para frente e para cima, as cordas vocais se aproximam e a epiglote vai para baixo, fechando a entrada para a traqueia (Figura 11). A onda peristáltica originada na faringe, propele o bolo alimentar em direção ao esôfago e ocorre o relaxamento do esfíncter esofágico superior (também chamado de cricofaríngeo). O EES se mantém contraído tonicamente e abre brevemente durante a deglutição ou em outras situações como no vômito. É importante que o EES feche rapidamente (0,5 a 1,5 segundos) porque a respiração fica inibida enquanto ele permanece aberto.

Figura 11: Fase faríngea da deglutição. Observe o palato mole fechando a nasofaringe e a epiglote sendo deslocada para trás, fechando a entrada da traqueia.

         Assim que o bolo alimentar entra no esôfago, o esfíncter esofágico superior (EES) se fecha e inicia-se a fase esofágica, que é a última fase do reflexo da deglutição (Figura 12). O centro da deglutição coordena uma onda peristáltica chamada de peristalse primária, que percorre todo o esôfago levando o bolo alimentar até o estômago. A abertura do esfíncter esofágico inferior ocorre durante toda essa peristalse (5 a 10 s), junto com o relaxamento receptivo do fundo do estômago.

 

 

            Para ficar mais claro o processo todo da deglutição assista o vídeo.

      A ideia principal da onda peristáltica é empurrar o bolo alimentar adiante, para que ele possa ser direcionado para o estômago (como você viu no vídeo anteriormente). Mas o que acontece se parte do bolo alimentar permanecer no esôfago? Ou se parte do conteúdo gástrico refluir para o esôfago? Caso a onda peristáltica primária não consiga esvaziar completamente o esôfago surge uma onda peristáltica secundária, em resposta à distensão da parede do esôfago provocada pela presença do bolo alimentar ou pelo conteúdo do refluxo, especialmente com baixo pH. Temos aqui exemplos de estímulos em mecano e em quimiorreceptores da mucosa esofagiana. A peristalse secundária é organizada nos próprios plexos entéricos que geram uma onda que se propaga da região estimulada até as regiões mais distais do esôfago e estômago. Por essa onda ser totalmente coordenada pelo sistema nervoso entérico da parede do esôfago, ela é considerada uma resposta local a um estímulo localizado (Figura 20), enquanto a peristalse primária percorre todo o esôfago, o estímulo deu início ao reflexo da deglutição e faz parte da regulação central da deglutição.

 

 

           Atenção! O esôfago possui músculo estriado no seu terço proximal e músculo liso no terço distal, tendo ambos não terço médio. Os plexos entéricos só existem na parede de músculo liso, portanto, a parte proximal é regulada diretamente por nervos somáticos e a distal possui o plexo mioentérico como intermediário da regulação neural extrínseca e ainda a organização local do movimento peristáltico.

 

 

      Você não pode esquecer que a musculatura do TGI trabalha em equipe, então ao mesmo tempo em que o esfíncter esofagiano inferior relaxa (para permitir a passagem do bolo alimentar do esôfago para o estômago) a musculatura da primeira porção do estômago (chamada de fundo) relaxa, permitindo que o bolo alimentar penetre no estômago. Esse relaxamento, que persiste durante a deglutição, denomina-se relaxamento receptivo e permite a acomodação do bolo alimentar no estômago sem elevar a pressão intragástrica, o que dificulta o refluxo gastroesofágico.

Figura 12: Fase esofágica da deglutição. Observe que o bolo alimentar já ultrapassou o esfíncter esofágico superior. 

        O esfíncter esofágico inferior (EEI) é uma estrutura complexa que envolve também o diafragma crural e o ligamento freno-esofágico, que funciona mantendo uma zona de alta pressão tonicamente contraída entre as deglutições. O neurotransmissor excitatório, que garante seu tônus e impede o refluxo gastroesofágico é a acetilcolina e o inibitório, que causa seu relaxamento na deglutição, é VIP e provavelmente o óxido nítrico. Normalmente, há refluxo do conteúdo gástrico para o esôfago independente da deglutição, mas em pequena quantidade e de modo que os mecanismos de defesa prontamente agem e não há consequências nocivas. Porém, se houver um desequilíbrio entre as defesas e o refluxo poderá haver sintomas decorrentes da presença de ácido no esôfago, como a pirose (azia) e até causar lesões na mucosa esofágica. As defesas são compostas pela produção de muco na parte distal do esôfago, o pH alcalino da saliva deglutida, a peristalse secundária e o relaxamento receptivo do estômago. Porém, a manutenção do tônus no esfíncter esofágico inferior é o fator antirrefluxo mais importante.

Você Sabia?

 O tônus do esfíncter esofágico inferior é importante para impedir o refluxo gastroesofágico e qualquer fator que diminuir seu tônus poderá favorecer o refluxo do conteúdo gástrico para o esôfago. Assim, muito do que costumamos fazer após as refeições pode ser prejudicial. Por exemplo, ingerir álcool, chocolates, café e fumar prejudicam a função desse esfíncter.  Então, melhor prestar atenção a esses hábitos pós-prandiais!

A Figura 13 ilustra todas as fases o processo de deglutição, para facilitar a comparação entre elas.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

             Questão para pesquisar e pensar:

 Você é daqueles que gosta de deitar depois do almoço e dormir um bom pedaço da tarde? Este hábito favorece o refluxo gastroesofágico. Você saberia explicar por que?

 

       Agora que o alimento chegou no estômago precisamos relembrar a sua função. O estômago é responsável por armazenar, misturar e triturar o alimento, propelindo o quimo para o duodeno, a primeira porção do intestino delgado. No estômago, o bolo alimentar se mistura com as secreções gástricas, formando o quimo. É importante lembrar que a digestão mecânica e química que ocorre no estômago precisa ser capaz de transformar o conteúdo gástrico em um líquido, pois o piloro não permite a passagem de partículas sólidas ou indigeríveis. Veremos mais adiante em que momento essas partículas poderão chegar ao duodeno.

Anatomicamente o estômago pode ser dividido em fundo, corpo, antro e piloro, como representado na Figura 14. No entanto, quando estamos estudando a motilidade, é importante pensarmos na divisão do estômago de acordo com o tipo de movimento que ocorre em cada região.

Figura 13: Fases da deglutição.

Figura 14: Regiões do estômago.

     O estômago, do ponto de vista motor, é dividido em duas regiões: a região proximal (com menor movimentação e força contrátil), que corresponde ao fundo e parte do corpo gástrico, e a região distal (com musculatura mais espessa e uma região com maior movimentação e maior força contrátil). Na região proximal, ocorre o relaxamento receptivo, associado com o armazenamento do alimento, enquanto a mistura e a trituração ocorrem na parte distal do estômago, na região do corpo e antro. Observe na Figura 15 que existe uma camada muscular adicional na parede do estômago, que é mais interna à circular e onde as fibras possuem distribuição oblíqua.

Figura 15: Camadas da parede gástrica.

O relaxamento receptivo, já mencionado, permite que a musculatura do fundo gástrico permaneça relaxada durante o processo da deglutição, de modo que o bolo alimentar se acomode sem elevar a pressão intragástrica. A atividade motora nesta região é mais tônica do que fásica, o que permite o armazenamento do bolo alimentar por 1 a 2 horas sem sofrer ação de mistura – essa é a fase de armazenamento gástrico.

A propulsão peristáltica (movimento que direciona o bolo alimentar adiante) inicia-se na região de marca-passo (gerado pelas células da Cajal), localizada na grande curvatura na porção proximal do corpo do estômago, como representado na Figura 16.1. A partir do marca-passo a atividade muscular aumenta do corpo até o antro; não apenas há maior quantidade de fibras musculares contráteis, mas também as contrações aumentam de intensidade em direção à região antro-pilórica. As contrações musculares do corpo estomacal permitem a mistura do alimento com as secreções gástricas, otimizando a digestão. O alimento, já parcialmente digerido, forma o que se chama de quimo (anteriormente chamado de bolo alimentar, quando o alimento entrou em contato com as secreções salivares).

Figura 16: Atividade motora gástrica de trituração. Observe a onda peristáltica que se dirige ao antro, de 1 a 3, e a contração do antro (4) empurrando o conteúdo de volta para o corpo.

       Por fim, a última função do estômago, do ponto de vista motor, é triturar o alimento, permitindo a formação de pequenas partículas e tornando o quimo líquido – essa função é extremamente importante, uma vez que apenas moléculas digeridas e dissolvidas no quimo conseguirão passar para o intestino (o piloro não permite que partículas não digeridas passem para o duodeno). Para ocorrer a trituração do alimento, ocorre um movimento de vai e vem, ou seja, a onda peristáltica iniciada no marca-passo se dirige do corpo até o antro (Figura 16 1 a 3) e na região antro-pilórica ocorre uma contração forte chamada de sístole antral (Figura 16, 4). Como o piloro encontra-se fechado, (pois ele só permite a passagem de quimo dissolvido), há retropropulsão do quimo ainda não totalmente dissolvido (ou seja, o quimo retorna para o corpo estomacal). Ao mesmo tempo, uma nova onda peristáltica inicia no corpo e se dirige ao antro e acaba encontrando a onda gerada pela contração do antro; esse movimento do quimo de vai e vem se repete e propicia a trituração do quimo e a mistura com o suco gástrico, como representado na figura 16. À medida que o quimo vai sendo digerido e dissolvido (partículas menores de 2 mm) ele consegue passar pelo piloro em pequenos jatos a cada onda peristáltica que chega ao piloro, iniciando o esvaziamento gástrico.

 

 

           Questão para pesquisar e pensar:

Se o piloro só permite a passagem do quimo dissolvido, o que acontece com as sementes ou cascas que não podemos digerir? E os objetos de plásticos que muitas vezes as crianças engolem (chapeuzinho do bombeiro, por exemplo)?

 

      O esvaziamento gástrico deve ocorrer na velocidade adequada, para que a digestão gástrica do quimo aconteça e que o duodeno possa processar o quimo adequadamente e não ocorra refluxo do duodeno para o lúmen gástrico. Ou seja, a velocidade do esvaziamento gástrico é bem controlada e depende de vários fatores, como a composição e consistência da dieta, fatores gástricos e duodenais, que vamos estudar a seguir (Figura 17).

       Embora o esvaziamento gástrico demore em média aproximadamente entre 3 e 5 horas, haverá diferenças dependendo das características da dieta. Se a dieta for predominantemente líquida, o esvaziamento será mais rápido e se ela for composta principalmente de gorduras, será mais lenta. Assim, a natureza química da dieta ingerida contribui para determinar a velocidade do esvaziamento: os primeiros a serem esvaziados são os carboidratos, seguidos das proteínas e as gorduras são os últimos nutrientes a serem esvaziados.

      Quando ocorre distensão da parede gástrica, pelo aumento de volume intragástrico, também ocorrerá esvaziamento mais rápido devido a um reflexo vago-vagal, ou seja, a aferência e a eferência do reflexo é feita por fibras do nervo vago. Observe na Figura 17 que os plexos são os centros reguladores do esvaziamento, recebendo informações provenientes de quimio e de mecanorreceptores gástricos e duodenais e também dos hormônios intestinais, secretados em resposta ao conteúdo do quimo. Como já mencionamos antes, o parassimpático e o simpático (inibitório) agirão através dos plexos, sendo que o parassimpático (nervo vago) poderá ser excitatório ou inibitório dependendo do neurotransmissor liberado.

Figura 17: Regulação do esvaziamento gástrico.

     À medida em que substâncias ácidas chegam no intestino ocorre a secreção de secretina; da mesma forma, a presença de gordura no intestino estimula a secreção de colecistocinina (CCK) e de peptídeo inibitório gástrico (GIP). Adicionalmente, a presença de aminoácidos no estômago estimula a secreção de gastrina; esses hormônios causam contração do piloro, retardando a passagem do quimo para o intestino delgado (Figura 17). Além disso, a hipertonicidade do quimo e a distensão da parede intestinal também inibem o esvaziamento gástrico (reflexo duodeno-gástrico). O quimo que chega ao intestino é ácido, hipertônico e contêm nutrientes – esses são os estímulos para ocorrer a liberação de hormônios que realizam retroalimentação negativa para que a motilidade diminua e assim menos quantidade de quimo chegue ao intestino, no intuito de dar tempo para o intestino processar os nutrientes que estão chegando.

 

      Agora que já vimos o processo de motilidade do estômago vamos seguir adiante e o próximo órgão é o intestino delgado. A motilidade do intestino delgado atende a 3 funções:

  • misturar o quimo com as secreções (principalmente no duodeno, uma vez que ali são lançadas as secreções pancreática e biliar), otimizando os processos de digestão (Figura 17);

  • aumentar o contato do quimo com a mucosa intestinal, otimizando o processo absortivo;

  • propelir o quimo no sentido céfalo-caudal (em direção ao cólon).

A propulsão do quimo no sentido céfalo-caudal ocorre devido a dois processos: peristalses curtas e gradiente de pressão luminal decrescente no sentido céfalo-caudal.

Figura 18: Esfíncter hepatopancreático. No duodeno, desembocam o ducto pancreático e o colédoco, no esfíncter de Oddi ou hepatopancreático, onde liberam as enzimas pancreáticas e a bile, respectivamente.

     O padrão de movimentação mais comum observado no intestino delgado são as chamadas segmentações; elas correspondem a anéis de contração da musculatura circular, que dividem o quimo em segmentos ovais; dentro de alguns segundos esses anéis da circular relaxam e outros se formam no espaço adjacente, gerando contrações que se alternam (onde estava contraído relaxa e onde estava relaxado contrai). Esse tipo de contração é o principal movimento de mistura e facilita o contato do quimo com a mucosa intestinal, como representado na Figura 19. É preciso salientar que esse tipo de movimentação quase não empurra o quimo adiante, ele serve mais como movimento de mistura (o quimo vai e vem e, por isso, quase não é propelido)!

Figura 19: Segmentação. O principal movimento de mistura no intestino delgado envolve contrações da circular que se alternam, empurrando o conteúdo de um lado para o outro.

        A taxa de propulsão do quimo no intestino delgado é baixa, permitindo que os processos de absorção e de digestão possam ocorrer de forma eficiente. Se esse movimento de segmentação não propele o quimo adiante, o que então faz ele percorrer todo o intestino delgado? Lembra que falamos antes sobre a frequência das ondas lentas que é diferente em cada órgão? Então, no duodeno é de 12 por minuto enquanto no íleo é de cerca de 7. Essa diferença de frequências faz com que tenhamos mais contrações no início do intestino delgado do que no fim, o que vai levando o quimo ao longo do intestino delgado.

       Além disso, há também um outro tipo de contração (que não é a segmentar!) que se encarrega da propulsão do quimo: a peristalse. Essa peristalse percorre poucos centímetros e é bastante irregular, ou seja, em um ponto há peristalse mas ao lado pode haver segmentação ou nenhum movimento naquele momento. Isso vai mudando ao longo de todo o intestino delgado, dependendo dos estímulos locais, químicos ou mecânicos, que desencadeiam o reflexo peristáltico (Figura 20). Esse reflexo é organizado inteiramente dentro da parede, gerenciado pelos plexos entéricos e ocorre quando o intestino contrai em resposta à presença do quimo no seu interior. Tanto a distensão da parede como estímulos químicos na mucosa podem estimular receptores sensoriais que se conectam com o plexo; por meio de interneurônios, o plexo mioentérico promove a contração da circular atrás (oral) do estímulo e da longitudinal à frente (caudal) desse estímulo, enquanto leva ao relaxamento da circular à frente e da longitudinal atrás, como representado na Figura 21. Parece confuso? Pense comigo. A longitudinal encurta o tubo, então sua contração na parte distal puxa a parede facilitando a passagem do quimo (parecido com o que acontece quando você veste uma meia. Você puxa a meia enquanto os dedos do pé são empurrados no sentido contrário, para dentro da meia).

Figura 20: Reflexo peristáltico. Observe os neurônios sensoriais (azul claro) levando o estímulo até o plexo mioentérico que por meio de interneurônios (roxo e azul escuro) promove a contração da circular atrás do ponto estimulado e da longitudinal à frente (amarelo).

       Já a circular, quando contrai diminui o diâmetro do tubo, isto é, fecha o lúmen. Naturalmente, isso ocorre proximal ao quimo para que ele não retorne e na parte distal a circular relaxa, abrindo espaço e facilitando a sua passagem (Figura 21). Esse reflexo peristáltico não ocorre só no intestino.  Você se lembra da peristalse que descrevemos no esôfago? A peristalse aqui é semelhante, porém no esôfago apenas a peristalse secundária é gerada a partir de um reflexo local.   

Figura 21: Peristalse. Observe que atrás do quimo (proximal ou oral) há contração da circular e relaxamento da longitudinal e na frente do quimo (distal ou caudal) há contração da longitudinal e relaxamento da circular.

De forma resumida, a presença de quimo no lúmen:

  •  proximal (oral) ao estímulo: estimula a contração da camada muscular circular e inibe a contração da camada muscular longitudinal;

  • distal (caudal) ao estímulo: estimula a contração da camada muscular longitudinal e inibe a contração da camada muscular circular.

   

      Essa é a atividade motora do intestino delgado no período pós-prandial, ou seja, após uma refeição. Mas no período do jejum noturno, que pode ser de várias horas, o que acontece no TGI? Durante o sono, o intestino também fica em repouso? Nada disso! Enquanto você dorme muita coisa está acontecendo no TGI. As secreções permanecem sendo secretadas, mas em menor quantidade. A deglutição também diminui em frequência. Mas o estômago e o intestino delgado possuem um tipo diferente de motilidade chamada de Complexo Mioelétrico Migratório (CMM) ou Complexo Motor Interdigestório.

      Qual seria a função de ter atividade motora no período interdigestivo? Alguns chamam de ondas de faxina, pois essa peristalse longa “varre” os restos alimentares que possam ter ficado ao longo do TGI e impede a estase e a migração bacteriana do ceco (principal local de fermentação bacteriana). Esse movimento é uma peristalse, porém a peristalse é longa, iniciando no estômago e percorrendo todo o intestino delgado (vai até o final do íleo). Após alguns minutos, volta a iniciar nova onda de faxina no estômago que vai varrendo todo o conteúdo do intestino delgado. Aparentemente o hormônio motilina, secretado pela mucosa intestinal, seria responsável por essa peristalse, já que sua concentração aumenta no plasma nesse período.  É importante salientar, que apenas nesse período ocorre relaxamento do piloro, permitindo que qualquer partícula não digerida no período digestório possa sair do estômago e ser carregada até o intestino grosso para sua eliminação nas fezes. É o caso das fibras alimentares, que não são digeridas por nossas enzimas e contribuem para a formação do bolo fecal e para o trânsito intestinal. As ondas de faxina são interrompidas quando ocorre a ingestão de alimentos.

 

      O reflexo peristáltico é chamado também de lei do intestino; qualquer estímulo na parede do intestino gera uma resposta peristáltica, que tende a empurrar mais rapidamente o conteúdo luminal. Há vários outros reflexos, que envolvem ações hormonais, mas principalmente regulação neural. Relembre na Figura 22 a inervação extrínseca e intrínseca do TGI. Especialmente os reflexos longos, dependem da inervação extrínseca. Entre as várias moléculas sinalizadoras que participam da regulação da motilidade intestinal, estão os hormônios gastrina, colecistocinina e motilina, que são estimuladoras dessa motilidade.

Figura 22: Inervação do TGI. Observe que a inervação parassimpática é realizada pelo nervo vago desde o esôfago, estômago e ao longo de todo o intestino delgado e cólon proximal e a parte distal do cólon é inervada por nervos pélvicos, originados na medula sacral.

       Quando as alças intestinais são manipuladas, por exemplo em uma cirurgia abdominal, ou quando há irritação do peritônio por algum processo infeccioso, haverá uma inibição da motilidade do intestino delgado como um todo. Este reflexo é chamado intestino-intestinal ou íleo adinâmico. Essa paralisia dura algumas horas ou até dias após a cirurgia. Também ocorrem reflexos longos, como o gastro-ileal e o gastro-cólico, quando a atividade motora no estômago aumenta a motilidade do íleo e do cólon, respectivamente.  Como se a entrada de alimentos no estômago fosse um sinal para acelerar o esvaziamento do intestino para receber e processar a nova refeição!

 

           

                Atenção! No período interdigestório, ou seja, entre as refeições ou em jejum, ocorre uma onda peristáltica longa e única; ela incia no estômago e só termina no final do íleo. Sua função é varrer restos celulares e alimentares, que podem servir como caldo de cultura para as bactérias. Durante e logo após as refeições, as peristalses são curtas e irregulares e o objetivo é fazer uma propulsão lenta para permitir que ocorram os processos de digestão e absorção. Independente do período, o movimento peristáltico gastrointestinal depende sempre da coordenação do plexo mioentérico.  

 

        No final do intestino delgado temos o esfíncter íleo-cecal, o qual se localiza entre o íleo (última porção do intestino delgado) e o ceco (primeira porção do intestino grosso). Esse esfíncter normalmente está fechado; entretanto, quando o íleo distende com a chegada do quimo ocorre relaxamento do esfíncter íleo-cecal, permitindo que pequenas quantidades do quimo sejam transportadas para o ceco. A distensão do final do íleo provoca abertura da válvula íleo-cecal, enquanto a distensão do ceco provoca fechamento dessa válvula, impedindo refluxo do conteúdo do ceco para o intestino delgado. O principal reflexo envolvido na motilidade deste esfíncter é o reflexo gastroileal, no qual o aumento da atividade contrátil e secretora do estômago aumenta a atividade contrátil do íleo.

 

       Agora o quimo chegou no intestino grosso! Para estudar a motilidade, vamos primeiro pensar: Quais as funções dessa parte do TGI? No intestino grosso, o quimo vai ser transformado em bolo fecal e este será eliminado na defecação. Para isso, é preciso absorver água do quimo para que ele possa formar o bolo fecal.  Outras funções do intestino grosso ou cólon envolve o fluxo de íons em ambos os sentidos do epitélio e a ação das bactérias presentes em grande quantidade nessa região do TGI. As ações das bactérias são inúmeras, como o metabolismo de nutrientes, fibras, sais biliares, a síntese de moléculas, como vitaminas e enzimas, controle de bactérias patogênicas, etc. Além disso, a relação da microbiota com o sistema imunológico é importante e faz parte também do eixo intestino-cérebro.

       Antes de examinarmos a motilidade, vamos revisar brevemente a anatomia. Na Figura 23, vemos cada porção do intestino grosso e os esfíncteres que separam o intestino grosso do intestino delgado (íleo-cecal) e do meio externo (esfíncteres anais interno e externo). A musculatura longitudinal no cólon é concentrada em três feixes denominados taenia coli, que correm do ceco até o reto; a musculatura circular é mais desenvolvida em algumas regiões, formando as haustrações. Os haustros não são fixos, eles se formam e se desfazem conforme ocorrem contrações da musculatura circular, segmentando o cólon (Figura 23).

Figura 23: Anatomia do intestino grosso.

       Agora podemos associar as funções realizadas com a motilidade que ocorre em cada região do intestino grosso. A absorção da água se dá principalmente no início do intestino grosso, no cólon ascendente. O tipo de movimento que ocorre nesta região é semelhante à peristalse curta, com movimento de vai e vem e pouca propulsão; são movimentos lentos que permitem que o conteúdo colônico permaneça tempo suficiente no cólon ascendente para a adequada absorção de água. O manejo adequado da água é fundamental para a formação das fezes e sua eliminação. Excesso de água no lúmen pode ultrapassar a capacidade de absorção do cólon e produzir fezes líquidas e a falta de água pode dificultar o trânsito intestinal e levar à constipação intestinal. O intestino grosso recebe diariamente cerca de 1 a 2 litros de água e as fezes normais contém aproximadamente 100 a 200 mL.

       Para a formação do bolo fecal e lubrificação é secretado muco pelas células caliciformes, presentes especialmente na mucosa do cólon transverso e descendente, mas também secretado em outros segmentos do cólon. Nestes segmentos, ocorre mistura com o muco e amassamento feito pelas haustrações, movimento semelhante à segmentação do intestino delgado. As haustrações movimentam o conteúdo luminal tanto no sentido céfalo-caudal como no sentido oposto, promovendo pouca propulsão.

        A propulsão céfalo-caudal do conteúdo colônico (bolo fecal), ocorre ao longo de todo o cólon de forma lenta, exceto pelo movimento de massa. O movimento de massa envolve a contração por extensão aproximada de 20 cm, que normalmente inicia no cólon transverso e pode percorrer toda a extensão do cólon. A contração extensa da parede, como uma peristalse longa, empurra o conteúdo luminal por uma distância relativamente grande e o bolo fecal vai sendo empurrado em direção ao reto. O movimento de massa ocorre 1 a 3 vezes ao dia, muitas vezes associado a um reflexo longo, como o gastro-cólico (presença de bolo alimentar no estômago estimulando a resposta motora no cólon).

 

 

          Um exemplo do reflexo gastro-cólico que ocorre muito frequentemente é a defecação após a ingestão de alimentos seguindo um período de jejum, como no café da manhã. Muitas pessoas possuem um hábito intestinal muito regular, de forma que a defecação ocorre quase sempre no mesmo horário. Porém a regularidade e frequência de defecações depende muito dos hábitos alimentares, e outras questões ambientais, como a disponibilidade de tempo, o estresse, etc.

 

        A chegada do bolo fecal ao reto, principalmente devido ao movimento de massa, distende a sua parede e a distensão do reto é o estímulo que desencadeia o reflexo da defecação (Figura 24) e sinaliza também para que a pessoa tenha consciência da necessidade de evacuação (“desejo de evacuar”). Mas, como isso acontece? Essa informação vai até o córtex cerebral e percebemos que “algo” está acontecendo no reto e precisamos decidir se vamos permitir ou impedir a defecação.

Figura 24: Reflexo da defecação. Observe que a distensão das paredes do reto ativam a via aferente (laranja) que vai até a medula sacral. A resposta do parassimpático (em verde) estimula a contração das paredes do reto e o relaxamento do esfíncter anal interno. Em azul, temos a resposta voluntária sobre o esfícter externo.

      Quando as fezes distendem o reto, mecanorreceptores da sua parede são estimulados e a via aferente leva essa informação até a medula sacral. A partir daí, a resposta eferente do reflexo começa a ser organizada, junto com a ação direta do plexo mioentérico. Com a entrada das fezes há um aumento passivo da pressão interna do reto que causa contração de suas paredes e aumente ainda mais a pressão, agora ativamente.

        A via eferente do reflexo da defecação levará ao relaxamento do esfíncter anal interno e contração do esfíncter anal externo. Para a defecação ocorrer, deve haver relaxamento voluntário do esfíncter anal externo permitindo a expulsão das fezes, já que o esfíncter interno já estará relaxado pelo reflexo. Se a defecação for adiada, a contração do esfíncter anal externo (de forma voluntária) impede a saída das fezes o que promove a continência fecal. As fezes são então levadas do reto de volta para o cólon sigmoide e o desejo de defecar é suspenso temporariamente. O bolo fecal permanecerá lá até que ocorra novo movimento de massa, ou que o bolo fecal seja empurrado por movimentos lentos até o reto e inicie novo reflexo da defecação. Se o bolo fecal permanecer por muito tempo no cólon, mais água será reabsorvida, causando endurecimento das fezes e dificultando a defecação!

 

 

          Atenção! O controle voluntário do esfíncter anal externo não faz parte do reflexo da defecação. No reflexo, o esfíncter é contraído muito rapidamente, enquanto não fomos avisados da urgência da situação e não tivemos tempo de contrair ou relaxar o esfíncter voluntariamente. O controle voluntário ocorre, portanto, depois do reflexo. Imagine o que ocorreria se o esfíncter externo não fosse contraído pelo reflexo?

 

        Além disso, ocorrerão contrações no cólon descendente e sigmoide, empurrando o bolo fecal em direção ao reto, aumenta a produção de muco no canal anal e reto, para lubrificar e facilitar a passagem das fezes, o assoalho pélvico relaxa e a parede abdominal contrai aumentando a pressão intra-abdominal.

        O simpático parece não ter papel importante no controle do processo de defecação – o controle voluntário sobre o processo é exercido pelo nervo somático pudendo e o parassimpático pelos nervos pélvicos (Figura 24).

 

 

             Questão para pesquisar e pensar:

Povos de culturas diferentes podem ter o hábito de defecar em posições diferentes, usando vasos sanitários, buracos no chão, elevando as pernas ou simplesmente agachando na posição de cócoras. Qual a posição seria mais favorável à passagem das fezes pelo reto, considerando fatores anatômicos? Explique.

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