SECREÇÃO PANCREÁTICA E BILIAR
A maior parte da digestão e absorção de nutrientes se dá no intestino delgado. Para isso, na primeira porção do intestino delgado, o duodeno, a secreção pancreática e a secreção biliar se encontram com o quimo que chega a partir do estômago. O quimo foi formado no lúmen gástrico pela ação do ácido clorídrico e da enzima pepsina. Por isso, o quimo chega ao duodeno com pH muito baixo, o que pode ser nocivo para as paredes do duodeno, uma vez que a mucosa duodenal não possui a eficiente proteção da mucosa gástrica, uma espessa camada de muco com bicarbonato. No duodeno é onde atuam as enzimas mais potentes, as enzimas pancreáticas. Para que elas possam atuar adequadamente, é preciso que algumas condições sejam cumpridas: a) o pH ideal da ação enzimática deve ser mantido, (pH próximo de 7); b) algumas enzimas são secretadas de forma inativa (zimogênios) e precisam ser ativadas no lúmen intestinal; c) os sais biliares precisam estar presentes no lúmen intestinal, para emulsificar as gorduras e permitir a ação da lipase. Assim, a secreção pancreática exócrina contribui com as enzimas, secretadas pelos ácinos, e com a manutenção do pH alcalino, com a secreção de bicarbonato pelas células ductais. Já a bile, contribui com os sais biliares, os quais são armazenados na vesícula biliar. Para que essas secreções ocorram de forma coordenada e nas quantidades adequadas, existem os sistemas de regulação. Neste caso, a regulação das secreções biliar e pancreática vai depender principalmente dos hormônios secretados pela mucosa intestinal: secretina e colecistocinina. A seguir, vamos ver com mais detalhes como isso tudo acontece.
CARACTERÍSTICAS ESTRUTURAIS DO PÂNCREAS
O pâncreas é um órgão abdominal, com aproximadamente 15 a 20 cm de comprimento, localizado ao nível dos corpos vertebrais de L1 e L2 (Figuras 1 e 2). A forma do pâncreas é alongada, situado em posição horizontal, tendo o duodeno à direita e o baço à esquerda (Figura 2).
Figura 1. Trato gastrointestinal. Observe a localização do pâncreas no abdome, encoberto pelo estômago (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Figura 2. Localização do pâncreas na cavidade abdominal. Observe que o pâncreas se dispõe horizontalmente, estando a cabeça encaixada na curvatura do duodeno e a cauda passa adiante do rim esquerdo, em direção ao baço. Foram removidos o fígado, o estômago e o cólon, além das alças intestinais para melhor visualização do pâncreas (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pancreas.jpg).
O pâncreas é dividido em cabeça, corpo e cauda e se situa atrás do estômago. A cabeça se encaixa na curvatura do duodeno, onde vai desembocar o ducto pancreático principal (Figura 3) e a cauda passa adiante do rim esquerdo (Figura 2). Na junção da cabeça e do corpo há um estreitamento chamado de colo.
Figura 3. Disposição do pâncreas na cavidade abdominal. Observe que o pâncreas está localizado atrás do estômago, tendo seu ducto principal desembocando no duodeno, junto ao ducto biliar comum, no esfíncter de Oddi (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
A maior parte do pâncreas é retroperitoneal, porém a sua cauda está envolvida pelo peritônio. Ele é achatado no sentido anteroposterior, com uma projeção na porção inferior da cabeça, chamada de processo uncinado, por isso se diz que tem a forma de um peixe ou de um martelo. Sua irrigação sanguínea é realizada por ramos do tronco celíaco, como a artéria esplênica, e da artéria mesentérica superior e a drenagem venosa se dá para a veia porta. A inervação parassimpática ocorre via nervo vago e os ramos do simpático são originados no plexo celíaco.
O pâncreas é formado por lóbulos e possui tecido exócrino (95%) e endócrino (5%). A porção exócrina é constituída de ácinos que desembocam em pequenos ductos, os quais confluem para ductos maiores até chegar ao ducto principal. Tanto as células acinares como as ductais contribuem para a secreção exócrina do pâncreas, importante para a digestão que ocorre no lúmen do intestino delgado. A porção endócrina do pâncreas consiste em ilhotas (ilhotas de Langerhans) distribuídas entre os ácinos, as quais secretam os hormônios glucagon e insulina (Figura 4).
O ducto principal, também chamado de ducto de Wirsung, percorre o pâncreas longitudinalmente em direção ao duodeno e pode se juntar ao ducto biliar comum (colédoco) antes de desembocar na ampola hepatopancreática (ampola de Vater)(Figura 3). O esfíncter hepatopancreático (esfíncter de Oddi) é um anel de músculo liso que envolve a papila duodenal e controla a liberação do suco pancreático e da bile para o duodeno. Algumas pessoas possuem uma variação anatômica que forma outro ducto, chamado de acessório ou ducto de Santorini, o qual desemboca alguns centímetros acima do ducto principal.
Figura 4. Estrutura interna do pâncreas. Observe que os ácinos desembocam em ductos que confluem para o ducto pancreático principal. Entre os ácinos se distribuem as ilhotas (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Inicialmente, é importante definir qual a secreção pancreática vamos tratar neste capítulo, uma vez que o pâncreas é um órgão misto. Trataremos aqui apenas da secreção exócrina, deixando a secreção endócrina para o capítulo de fisiologia endócrina.
A secreção pancreática exócrina consiste basicamente de dois componentes, as enzimas e o componente aquoso contendo os eletrólitos, especialmente o bicarbonato, que garante o pH ideal de ação das enzimas pancreáticas.
As enzimas pancreáticas são hidrolases sintetizadas e secretadas pelas células acinares. Estas células, apresentam características típicas de células que secretam proteínas (Figura 5). Observa-se o núcleo basal, retículo endoplasmático rugoso abundante e os grânulos secretores contendo as enzimas que serão secretadas por exocitose na membrana apical.
Figura 5. Células acinares. Observe na parte apical da célula os grânulos de zimogênio e a exocitose ocorrendo na extremidade luminal da célula acinar (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Nem todas as enzimas pancreáticas são zimogênios, mas as enzimas proteolíticas são todas inativas, para preservar a integridade do parênquima pancreático. Para evitar que elas sejam ativadas dentro do pâncreas, podendo digeri-lo, as células acinares também secretam um peptídeo inibidor da tripsina para evitar que esta enzima seja ativada precocemente. A tripsina é especialmente importante porque ela ativa todas as demais enzimas proteolíticas secretadas pelo pâncreas (Figura 6), além da colipase e da fosfolipaseA2. A amilase pancreática, a lipase e a colesterol esterase são secretadas na forma ativa.
A tripsina é secretada como zimogênio, o tripsinogênio, e apenas no intestino delgado será ativada, ao entrar em contato com a membrana luminal do enterócito, a borda em escova. A enzima que cliva o tripsinogênio e forma a tripsina ativa é a enterocinase, também chamada de enteropeptidase. Na borda em escova do enterócito, esta enzima ativa a tripsina, a qual ativa as demais enzimas inativas secretadas pelo pâncreas (Figura 6). Além disso, a tripsina é autocatalítica, ativando cada vez mais moléculas de tripsinogênio, o que amplifica a ativação das enzimas pancreáticas e a digestão dos nutrientes no lúmen intestinal.
Figura 6. Ativação das enzimas pancreáticas. Observe que a tripsina é ativada pela enteropeptidase e, além de ser autocatalítica, também ativa as demais enzimas.
A presença de produtos da digestão de lipídeos e proteínas no lúmen são fortes estimuladores do hormônio CCK (colecistocinina), secretado por células presentes na mucosa intestinal (Figura 6). A liberação de colecistocinina é muito importante pois é o principal regulador da secreção enzimática pelas células acinares do pâncreas exócrino.
Além de estimular a secreção enzimática do pâncreas, a CCK promove a contração da vesícula biliar e o relaxamento do esfíncter de Oddi, fazendo com que rapidamente a bile armazenada na vesícula biliar alcance o duodeno. O componente mais importante da bile são os sais biliares, os quais vão emulsificar as gorduras diminuindo o tamanho das gotículas de lipídeos e aumentando a área de superfície para ação da lipase pancreática sobre os triacilglicerois da dieta, pois a lipase só age na interface gordura/água (Figura 7).
Figura 7. Emulsificação dos lipídeos. Os sais biliares são anfipáticos e emulsificam os lipídeos, aumentando a área para ação enzimática (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Apesar de precisar da emulsificação feita pelos sais biliares, a lipase é repelida por eles, dificultando sua ação. Por isso, a colipase é fundamental para sua ação já que ancora a lipase na superfície da gota de gordura emulsificada (Figura 8).
Figura 8. Digestão dos lipídeos. Após as gotas de gordura serem envolvidas pelos sais biliares, a lipase pode atuar sobre a superfície dessas gotas, com auxílio da colipase. Os produtos da ação das enzimas lipolíticas formarão as micelas (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
A presença do quimo no duodeno também estimula a secreção do hormônio secretina pela mucosa duodenal, pois o principal estímulo para este hormônio é o pH ácido. Lembre-se que o quimo é bastante ácido nessa região, uma vez que acaba de sair do lúmen gástrico, onde a secreção de HCl torna o pH muito baixo (Figura 9). A secretina potencializa a ação da CCK, estimulando também a secreção enzimática das céulas acinares, do mesmo modo que a acetilcolina liberada pelos terminais parassimpáticos do nervo vago. Após ligarem-se aos seus respectivos receptores, tanto CCK como acetilcolina causam aumento do íon cálcio intracelular, o qual atua como segundo mensageiro estimulando a exocitose das enzimas armazenadas nos grânulos. Já a secretina, atua ativando o segundo mensageiro AMPcíclico (Figura 9).
Figura 9. Regulação da célula acinar. A secreção das enzimas pancreáticas por exocitose é estimulada pelo AMPc e pelo íon cálcio intracelular, segundos mensageiros usados pelos reguladores acetilcolina, CCK, GRP, secretina e VIP. GRP: peptídeo regulador da gastrina; ACh: acetilcolina; VIP: peptídeo intestinal vasoativo; AMPc: AMP cíclico (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
As enzimas pancreáticas atuam em todos os principais nutrientes da dieta, como carboidratos, proteínas, lipídeos, DNA e RNA. A amilase pancreática é secretada na forma ativa e atua da mesma forma que a amilase salivar, nas ligações alfa 1-4 das cadeias lineares dos polissacarídeos. As ligações alfa 1-6 das ramificações serão digeridas apenas por enzimas da borda em escova, completando a digestão dos carboidratos.
Figura 10. Digestão de carboidratos pela amilase pancreática. Observe o local de ação da amilase pancreática nas ligações alfa 1-4 dos polissacarídeos (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
As enzimas proteolíticas são secretadas de forma inativa e são ativadas pela tripsina no lúmen duodenal. Destas, a tripsina, a elastase e a quimiotripsina são endopeptidases, ou seja, atuam no interior da molécula da proteína. As carboxipeptidases são exopeptidases, atuando na extremidade carboxi da proteína. Estas enzimas vão clivar as ligações peptídicas que unem os aminoácidos (Figura 11). Os aminoácidos são separados por hidrólise, adicionando uma molécula de água.
Figura 11. Hidrólise de ligação peptídica entre dois aminoácidos. Observe a hidrólise rompendo essa ligação enquanto adiciona uma molécula de água (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Como já vimos, a digestão dos triglicerídeos envolve a ação da lipase, a hidrolase do éster de glicerol, com a ajudada colipase. A colesterol esterase, hidrolase do éster do colesterol desesterifica o colesterol e também pode atuar de forma inespecífica em outros lipídeos. Já a fosfolipase A2, que também precisa ser ativada pela tripsina, rompe as ligações éster dos fosfolipídeos. Os produtos da digestão dos lipídeos serão ácidos graxos livres, monoacilglicerois, colesterol e lisofosfolipídeos, além de vitaminas lipossolúveis desesterificadas. Os sais biliares vão envolver esses lipídeos já digeridos, fomando as micelas, as quais serão fundamentais para dar solubilidade aos lipideos no quimo aquoso, transportando-os até a borda em escova para serem absorvidos pelo enterócito (Figura 8).
A secretina tem grande importância para promover as condições ideais para a digestão enzimática no lúmen intestinal. Ela atua para neutralizar o pH luminal, uma vez que age nos ductos pancreáticos e biliares estimulando a secreção de bicarbonato (Figura 10). O pH neutro ajuda a proteger a mucosa duodenal da ação do ácido, uma vez que não há camada protetora de muco como no estômago, e porporciona o pH ideal para a ação das enzimas pancreáticas, as quais atuam em pH próximo de 7.
A secretina foi o primeiro hormônio descrito, iniciando o estudo de substâncias que chegavam aos seus órgãos-alvo através da corrente sanguínea: os hormônios. A secretina foi descoberta em 1902. Os pesquisadores demonstraram que um fator da mucosa duodenal estimulava a secreção aquosa do pâncreas. A secretina é um peptídeo de 27 aminoácidos da mesma família do glucagon, do VIP e do GIP, os quais possuem estrutura semelhante.
Você Sabia?
A secreção pancreática é isotônica em relação ao plasma, sendo que as concentrações dos íons sódio e cloreto são semelhantes às do plasma, em taxas de secreção baixas. As células ductais são unidas por junções oclusivas relativamente permeáveis, que permitem a passagem paracelular de água e íons sódio, seguindo o gradiente elétrico (lúmen negativo) gerado pela secreção de cloreto e bicarbonato para o lúmen (Figura 12).
Quando a secreção pancreática é estimulada e a taxa de secreção aumenta, a composição de eletrólitos se modifica, aumentando a concentração de bicarbonato no lúmen e diminuindo a de cloreto proporcionalmente, de modo que a proporção de ânions e cátions não é alterada.
Figura 12. Secreção da célula ductal. Observe a presença de um trocador bicarbonato/cloreto na membrana luminal da célula ductal, o canal de cloreto sensível ao AMPc e as junções oclusivas permeáveis (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
O principal estimulador da secreção aquosa dos ductos é a secretina, um hormônio que se liga a seu receptor na membrana basolateral. Seu receptor ativa a via intracelular de sinalização do AMPc, através da proteína Gs e aumento da atividade da enzima Adenil ciclase. A via do AMPc ativa a proteína cinase A e o canal de cloreto apical e o cotransporte sódio/bicarbonato na membrana basolateral. O resultado da ação da secretina é uma secreção líquida abundante e rica em bicarbonato.
Para pensar e pesquisar: Na doença fibrose cística há uma alteração genética do canal de cloreto apical das células ductais (CFTR=regulador da condutância transmembrana da fibrose cística). Pense nas possíveis causas do paciente ter dificuldade na digestão de nutrientes
O bicarbonato é secretado para o lúmen em troca pelo íon cloreto, que acaba saindo pelo canal de cloreto (CFTR) e retornando para o líquido intracelular pelo trocador bicarbonato/cloreto (Figura 12). Quando a taxa de secreção é alta essa troca não acontece de forma proporcional ao alto fluxo e a concentração de bicarbonato no lúmen aumenta significativamente. A origem do bicarbonato secretado no lúmen é a dissociação intracelular do ácido carbônico e o transporte basolateral acoplado ao íon sódio (Figura 12).
A regulação da secreção pancreática envolve principalmente os hormônios intestinais secretina e colecistocinina, na fase intestinal, que corresponde a cerca de 80% da secreção liberada (Figura 13). A CCK é secretada pela mucosa duodenal, principalmente pelo estímulo de peptídeos, certos aminoácidos e produtos da digestão parcial de lipídeos no lúmen intestinal. A CCK atua para que a digestão desses nutrientes possa ocorrer, estimulando a secreção de enzimas pelas células acinares do pâncreas e promovendo a contração da vesícula biliar e a liberação dos sais biliares no lúmen. Já o hormônio intestinal secretina, tem como principal estímulo o íon hidrogênio luminal. A secretina atua nos ductos pancreáticos estimulando a secreção de bicarbonato, o que vai neutralizar o pH ácido do quimo proveniente do estômago (Figura 13). Tanto secretina como CCK também atuam potencializando a ação uma da outra nas suas células-alvo preferenciais.
Na fase intestinal, o nervo vago também é ativado pela CCK e por reflexos enteropancreáticos, desencadeados por mecano e quimiorreceptores da mucosa intestinal. Sua ação é estimuladora das células ductais e acinares.
Figura 13. Regulação da secreção pancreática. Observe que a presença de proteínas e lipídeos no lúmen intestinal são estimuladores da CCK e o íon hidrogênio da secretina. A secretina atua nos ductos estimulando a secreção de bicarbonato e a CCK estimula a secreção de enzimas pelas células acinares (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Na fase cefálica, os estímulos visuais, olfatórios e gustatórios são responsáveis por até 15% do volume da secreção pancreática, e o mediador desses estímulos é o nervo vago. Na fase gástrica, com a presença do bolo alimentar no estômago, a distensão do estômago, que provoca reflexos neurais gastropancreáticos são responsáveis por cerca de 10% da secreção pancreática.
SECREÇÃO BILIAR
O fígado tem inúmeras funções essenciais para a manutenção da homeostase, como o metabolismo e armazenamento de nutrientes e vitaminas, a eliminação de substâncias endógenas ou exógenas (detoxificação), síntese de proteínas plasmáticas, coagulação sanguínea, digestão de lipídeos, etc. A função que vamos tratar aqui é apenas a relacionada à secreção exócrina da bile, uma solução verde amarelada que é liberada no lúmen do intestino delgado e contém componentes que auxiliam na digestão de gorduras.
A bile é sintetizada e secretada pelo fígado e armazenada em uma pequena “bolsa” chamada de vesícula biliar. Além dos sais biliares, que atuam na emulsificação dos lipídeos, a bile atua na excreção para as fezes de substâncias que devem ser eliminadas do organismo, como a bilirrubina e o colesterol.
Como o hepatócito metaboliza o álcool absorvido no tubo digestorio, quando ele é ingerido em excesso e por tempo prolongado pode causar lesões no fígado sem que o paciente apresente sintomas, pois o fígado se recupera de lesões leves. Inicialmente, o álcool causa acúmulo de gordura no fígado (esteatose hepática) e inflamação (hepatite alcoólica), até que parte do parênquima seja substituído por fibrose (cirrose) de forma irreversível.
Você Sabia?
CARACTERÍSTICAS ESTRUTURAIS DO FÍGADO
O fígado é um órgão grande, situado na cavidade abdominal, abaixo do diafragma e recoberto parcialmente pela caixa torácica. A maior parte do fígado se situa do lado direito do abdome superior e cerca de 1/3 do lado esquerdo (Figura 14 e 15).
Figura 14. Localização do fígado. Observe que o fígado se localiza na parte superior do abdome (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Liver_01_animation1.gif).
Figura 15. Relações do fígado. Observe a vesícula biliar e as vias biliares extra-hepáticas e veja que o fígado cobre anteriormente parte do estômago (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
O fígado tem formato triangular, apresentando a face diafragmática (superior) e a face visceral (póstero-inferior). O ligamento falciforme separa anteriormente os lobos direito e esquerdo, estendendo-se do diafragma até a face superior do fígado (Figura 16). Esse ligamento ajuda a suspender o fígado na cavidade abdominal e apresenta em sua margem livre o ligamento redondo, um resquício da veia umbilical do feto.
Figura 16. Estrutura do fígado (vista anterior). Observe que o fígado se localiza logo abaixo do diafragma onde se prende pelo ligamento falciforme, o qual divide o fígado em lobo direito e lobo esquerdo (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Figado2.jpg).
A face visceral é dividida em 4 lobos (direito, esquerdo, caudado, quadrado), e apresenta várias depressões, como a fossa da vesícula biliar, o sulco da veia cava inferior e a porta do fígado, que corresponde ao hilo hepático (Figura 17). É também na face visceral onde encontram-se as impressões das vísceras vizinhas, como a impressão gástrica (lobo esquerdo), a duodenal, a renal e a cólica (lobo direito).
A porta do fígado corresponde ao hilo do fígado, por onde entram e saem várias estruturas importantes: artéria hepática, veia porta, ductos hepáticos, nervos e linfáticos. A inervação do fígado é proveniente do plexo hepático, contendo fibras do sistema nervoso autônomo.
Figura 17: Face visceral do fígado (vista posterior). Observe as impressões viscerais, veia cava inferior, lobos quadrado e caudado, vesícula biliar (gall bladder), ducto cístico e o hilo hepático na parte central. CBD: ducto biliar comum; CHD: ducto hepático comum (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Liver,_posterior_view_with_labels._(26894152984).png).
A bile é sintetizada pelos hepatócitos e liberada nos canalículos biliares, os quais são delimitados pelas membranas apicais dos hepatócitos adjacentes. Após passar pelos canais de Hering, a bile é drenada para os ductos biliares interlobulares na periferia do lóbulo. Estes se unem em ductos cada vez mais calibrosos, originando os ductos hepáticos direito e esquerdo, que emergem no hilo do fígado. A partir deste ponto as vias biliares são chamadas de extra-hepáticas (Figura 18).
Os ductos hepáticos direito e esquerdo se juntam formando o ducto hepático comum, o qual se une ao ducto cístico, que drena bile da vesícula biliar, formando o ducto colédoco, também chamado de ducto biliar comum (Figura 18). O colédoco desemboca no esfíncter de Oddi no duodeno, juntamente com o ducto pancreático principal, o qual conduz a secreção pancreática rica em enzimas
Durante os períodos interdigestivos, entre as refeições, a bile é armazenada em uma estrutura chamada de vesícula biliar. Nesses períodos, não ocorre liberação das secreções biliar e pancreática no duodeno, pois o esfíncter de Oddi, também chamado de hepatopancreático, permanece fechado.
Figura 18. Vias biliares extra-hepáticas. Observe o esfíncter de Oddi onde desembocam os ductos pancreático principal e colédoco, os ductos que carregam a secreção pancreática e a bile, respectivamente (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
A vesícula biliar é uma estrutura oca em forma de pêra, localizada na borda inferior do fígado, com capacidade de armazenar e concentrar cerca de 15 a 50 mL de bile. A vesícula biliar apresenta grande capacidade para concentrar a bile, pois as células epiteliais da mucosa apresentam microvilosidades e grande superfície para a absorção de água e eletrólitos. A absorção ativa de íons sódio para o espaço intercelular na mucosa da vesícula biliar gera gradiente elétrico para o cloreto e o bicarbonato também se deslocarem para esse espaço. Como as junções oclusivas são permeáveis à água, esta segue o gradiente osmótico e é absorvida para os capilares do epitélio, concentrando os solutos da bile cerca de 10 vezes. Embora sejam permeáveis à água, as junções entre as células não permitem a absorção dos ácidos biliares e outros solutos.
O principal estímulo para a contração da vesícula biliar é o hormônio intestinal colecistocinina (CCK), secretada pelas células I da mucosa duodenal, em resposta à presença de ácidos graxos e aminoácidos no duodeno, provenientes da digestão parcial das macromoléculas. Sua ação estimula a contração da musculatura lisa da vesícula biliar e o relaxamento do esfíncter de Oddi, provocando a liberação de bile no duodeno.
Lembre-se que a CCK também é forte estimulador da secreção pancreática de enzimas, de modo que a secreção de CCK na corrente sanguínea vai levar à liberação de bile, contendo os sais biliares que irão emulsificar a gordura, e também das enzimas pancreáticas que vão fazer sua digestão. Assim, as enzimas pancreáticas são liberadas no mesmo local no duodeno e praticamente ao mesmo tempo que os sais biliares, proporcionando as condições ideais para a digestão dos lipídeos.
É interessante observar que o fígado recebe sangue arterial a partir da artéria hepática (ramo da aorta abdominal) e o sangue proveniente dos capilares mesentéricos e das veias que formam a veia porta do fígado (Figura 19). A artéria hepática tem função de fornecer sangue arterial rico em oxigênio para o fígado, enquanto a veia porta hepática carrega sangue rico em nutrientes absorvidos no intestino delgado, principalmente. A veia porta é constituída da junção da veia esplênica com a veia mesentérica superior, as quais recebem também sangue proveniente do estômago e do cólon.
Figura 19. Irrigação sanguínea do fígado. Observe a chegada ao fígado de ramos da artéria hepática e da veia porta e a drenagem venosa das veias hepáticas para a veia cava inferior (Fonte Aprendendo Fisiologia).
O sangue proveniente da veia porta e da artéria hepática se distribui pelos sinusoides hepáticos irrigando os hepatócitos e percorrendo o lóbulo hepático em direção à veia central do lóbulo. Atualmente, as veias centrais ou centrolobulares são chamadas de vênulas hepáticas terminais. Destas veias, o sangue flui para as veias hepáticas e desemboca na veia cava inferior, seguindo até o átrio e ventrículo direitos do coração. Note que se estabelece um sistema porta, uma vez que o sangue proveniente dos capilares intestinais drena para a veia porta e desta para os capilares hepáticos (sinusoides), antes de seguir para o coração pela veia cava inferior.
Essa posição privilegiada do fígado permite que ele receba os nutrientes absorvidos antes de qualquer órgão e possa exercer a função de gerente e organizador do metabolismo. Vamos ver no capítulo da absorção, que grande parte dos lipídeos são absorvidos pelos linfáticos antes de chegarem à circulação sanguínea, não passando pela veia porta como os demais nutrientes. A chegada ao fígado pela veia porta de quase todas as substâncias absorvidas nos intestinos, permite também que o fígado metabolize e elimine na bile substâncias potencialmente nocivas absorvidas no intestino.
As células hepáticas ou hepatócitos são as unidades funcionais do lóbulo hepático. Essas células agrupam-se formando placas unicelulares de hepatócitos, que ao unirem-se compõem estruturas com seis lados, denominadas lóbulos hepáticos. O fígado é composto por essas estruturas lobulares que se distribuem por todo o parênquima hepático (Figura 20). Em cada um dos cantos do lóbulo hepático se encontra a tríade portal no espaço porta, formada por ramos da artéria hepática, da veia porta e um ducto biliar. Os ductos biliares carregam a bile até as vias biliares extra-hepáticas, que seguirão para o intestino delgado.
Figura 20. Lóbulos do fígado. Observe que os lóbulos hepáticos possuem uma veia no centro e o espaço porta nas extremidades do lóbulo (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
O sangue fornecido pelos ramos da artéria hepática (25%) e da veia porta hepática (75%) é transferido para vasos cada vez menores até chegar na região do espaço porta, de onde flui para os sinusoides (Figura 21). Os sinusoides são capilares sanguíneos largos e fenestrados, localizados entre as placas de hepatócitos, que conduzem o sangue pelo lóbulo hepático até a veia centrolobular, localizada no centro do lóbulo.
Figura 21. Lóbulos do fígado. Observe que os lóbulos possuem uma veia no centro do lóbulo e o espaço porta nas pontas do hexágono, constituído de um ramo da veia porta, um da artéria hepática e um ducto biliar (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Lembre-se que o sangue flui da periferia do lóbulo, a partir dos ramos da veia porta e da artéria hepática, para uma veia central localizada no centro do lóbulo. Em contrapartida, a secreção biliar produzida pelos hepatócitos é liberada nos canalículos biliares, estruturas que se unem à medida que percorrem a placa de hepatócitos, formando ductos progressivamente maiores que se dirigem para a periferia do lóbulo no espaço porta (Figura 22).
Figura 22. Direção do fluxo nos lóbulos do fígado. Observe que o fluxo sanguíneo pelos sinusoides ocorre em direção ao centro do lóbulo e a bile flui pelos canalículos biliares do centro do lóbulo para o espaço porta. A: veia centrolobular; B: ramo da veia porta; C: ramo da artéria hepática; D: ducto biliar; E: Hepatócitos. (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sinusoid.png).
Os lóbulos hepáticos são constituídos de placas de hepatócitos, que são as células responsáveis pela secreção hepática, tanto para a circulação sanguínea quanto para a bile. A secreção exócrina, a bile, é liberada no polo apical do hepatócito e vai pelos canalículos e ductos hepáticos até desembocar no duodeno. Nas Figuras 23 e 24, pode-se ver que os canalículos são constituídos pelas membranas de hepatócitos adjacentes e que há junções oclusivas que separam os domínios apicais do hepatócito dos domínios basolaterais.
Os hepatócitos possuem uma estrutura peculiar, tendo uma membrana apical, onde secretam sua secreção exócrina nos canalículos biliares e a membrana basal, em contato com o espaço de Disse e os capilares sinusoides (Figura 23). O espaço de Disse, ou perisinusoidal, separa os hepatócitos (membrana basolateral) dos sinusoides hepáticos e permite as trocas entre a corrente sanguínea e os hepatócitos.
No espaço de Disse, próximos aos sinusoides hepáticos, são encontradas as células estreladas hepáticas ou células de Ito. Essas células, em condições normais, têm a função de armazenar lipídeos e produzir fibras colágenas e outros componentes da matriz extracelular. Localizadas na superfície luminal do sinusoide encontram-se as células de Kupffer, macrófagos que fagocitam bactérias, hemácias envelhecidas, partículas virais e proteínas estranhas.
Devido à presença de aberturas em sua estrutura endotelial, os sinusoides podem trocar substâncias com os hepatócitos, através do espaço de Disse que separa essas duas estruturas. A parede dos sinusoides é bastante permeável, inclusive a macromoléculas, como as proteínas, uma vez que as células endoteliais são separadas por espaços, sua lâmina basal é descontínua e possuem fenestras, que são grandes “janelas” (100 a 200 nm).
A comunicação dos hepatócitos com os sinusoides deve ocorrer facilmente nos dois sentidos: hepatócito-sinusoide e sinusoide-hepatócito (Figura 23, bolinhas brancas). Isso é importante pois essas células executam diversas funções, que incluem uma ampla capacidade de sintetizar proteínas plasmáticas, como a albumina, protrombina e fibrinogênio, que são liberadas na corrente sanguínea. Por outro lado, o hepatócito é responsável por grande parte da metabolização de substâncias endógenas e exógenas que são extraídas da circulação, como os hormônios, por exemplo. Além disso, a circulação êntero-hepática traz nutrientes e sais biliares dos capilares intestinais, que o hepatócito precisa captar da circulação para metabolizá-los.
Figura 23. Hepatócitos. Observe que os hepatócitos se comunicam com os sinusoides, capilares fenestrados, pelo polo basolateral, passando pelo espaço de Disse (bolinhas brancas). Vemos no sinusoide, algumas hemácias e um macrófago (célula de Kupffer) e no espaço de Disse uma célula estrelada. Na membrana apical dos hepatócitos ocorre a secreção da bile para os canalículos biliares (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Em condições patológicas, como no uso repetido de álcool, as células estreladas se tornam produtoras de colágeno tipo I, laminina, proteoglicanos e fatores de crescimento. O depósito desses componentes leva a uma fibrose progressiva do fígado que é típica de uma doença conhecida como cirrose.
Você Sabia?
Mecanismos de secreção biliar
Além das funções metabólicas e da secreção de proteínas e outras substâncias para a circulação sanguínea, os hepatócitos sintetizam a bile, uma solução aquosa que atua na digestão e facilita a absorção dos lipídios. A bile é secretada continuamente pelos hepatócitos nos canalículos biliares, sendo a principal via de excreção do colesterol, fosfolipídeos, bilirrubina, xenobióticos e outras substâncias. Os hepatócitos possuem enzimas que transformam quimicamente as substâncias, especialmente as lipofílicas, como hormônios e fármacos, metabolizando-as por meio de conjugação, oxidação, metilação e outras reações químicas.
A bile apresenta na sua composição água, eletrólitos e componentes orgânicos. Os eletrólitos comumente encontrados na bile são Na+, K+, HCO3- e Cl-, em concentrações semelhantes às do plasma, com exceção do bicarbonato secretado pelos ductos, que deixam o pH da bile levemente alcalino. Os componentes orgânicos incluem sais biliares, fosfolipídeos, colesterol, proteínas e metabólitos de substâncias exógenas ou endógenas, como a bilirrubina (produto da degradação da hemoglobina). Alguns componentes da bile podem ser reabsorvidos no intestino e, pela circulação êntero-hepática, voltam ao fígado.
A bile é constituída da secreção dos hepatócitos para os canalículos e da secreção realizada pelos dúctulos biliares, que contribuem absorvendo e secretando água e eletrólitos para o lúmen (Figura 24). A secreção de água e bicarbonato pelos dúctulos biliares é estimulada pelo hormônio secretina, o que aumenta o volume da bile (efeito colerético). Este efeito da secretina é semelhante ao que ocorre nos ductos pancreáticos.
Figura 24. Secreção biliar. Observe que os hepatócitos secretam a bile para os canalículos biliares, por transporte ativo e passivo. Vemos no dúctulo biliar, revestido pelos colangiócitos, o transporte de íons e a ação da secretina nas células ductais (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Na Figura 24, observa-se o canal de cloreto ativado pelo AMPc, mediador da ação da secretina em suas células-alvo. A entrada de cloreto no lúmen do ducto promove a troca pelo bicarbonato, o que aumenta a concentração de bicarbonato nos ductos biliares. As junções oclusivas entre as células ductais são permeáveis ao íon sódio e à água, o quais são secretados no lúmen dos ductos contribuindo para aumentar o volume do fluxo biliar pelos ductos (25% da bile excretada) (figuras 24 e 25).
Os hepatócitos sintetizam e secretam de forma ativa para os canalículos biliares os ácidos biliares (65%), os fosfolipídeos (22%), especialmente a fosfatatidilcolina, a bilirrubina (0,3%), o colesterol (4%) e outros componentes orgânicos. A secreção de ácidos biliares e de outros solutos orgânicos nos canalículos exerce força osmótica que puxa a água passivamente para o lúmen canalicular (Figuras 24 e 25).
Há diferentes transportadores na membrana basolateral e na membrana apical dos hepatócitos, quase todos dependentes de ATP. Na membrana basal, há transportadores específicos dependentes de sódio, como o NTCP ou de cloreto (OATP), que carregam os ácidos biliares do sinusoide para o citoplasma do hepatócito. Na membrana canalicular, os ácidos biliares e outros solutos são secretados por meio de transportadores da família ABC (cassete binding ATP) ou da família MDR (multiple drug resistance) e suas proteínas ligadoras (MRP2). Na Figura 25, também estão representados transportadores da família ABC que exportam solutos na membrana basal, em direção aos sinusoides.
Figura 25. Transportadores nas membranas apical e basal do hepatócito. Observe o complexo de proteínas das junções oclusivas (tight junctions), que separam o polo apical (canalicular) do polo basal (membrana basolateral) do hepatócito. Na membrana basal, estão representados os transportadores ABCA1, ABCC1 (MRP1), ABCC3 (MRP3) e ABCC6 (MRP6) e na membrana apical ABCB1(MDR1), ABCB4 (MDR3), ABCB11 (BSEP), ABCC2 (MRP2), ABCC4 ABCG2 (BCRP) e ABCG5/G8. (ABC, ATP-binding cassette; MRP, multidrug resistance-associated protein; MDR, multidrug resistance; BSEP, bile salt export pump; BCRP, breast cancer resistance protein) (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Membrane_proteins_of_the_polarized_hepatocytes.jpg).
A principal função da bile é auxiliar na digestão e absorção dos lipídios, promovendo a emulsificação desses compostos. Os ácidos e sais biliares, que são os principais componentes orgânicos da bile, são elementos anfipáticos. Isso significa que suas moléculas possuem grupos polares (hidrofílicos), que interagem com a água, e grupos apolares (hidrofóbicos), que se ligam aos lipídios. Os grupos polares são as OH e as COOH dissociadas e o grupo apolar é o anel esteroide do colesterol (Figura 26).
Quando os ácidos e sais biliares envolvem externamente os enormes glóbulos de gordura, promovem sua separação física pela diminuição da atração entre as moléculas dos lipídios. Sem o componente anfipático dos sais biliares, as gotas lipídicas tenderiam a se unir, diminuindo a superfície de contato e sua solubilização no conteúdo luminal que é aquoso. A presença dos sais biliares impede que as gotículas de gordura voltem a se agrupar, estabilizando a emulsão (Figura 26).
Figura 26: Emulsificação dos lipídeos pelos sais bilares. Os ácidos e os sais biliares são anfipáticos. Observe que a parte hidrofílica dos sais biliares se volta para fora, em contato com o meio aquoso do quimo, e a parte hidrofóbica se volta para os lipídeos, no interior da emulsão (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lipid_and_bile_salts-es.svg e Aprendendo Fisiologia).
Além de tornar os lipídeos mais solúveis no quimo aquoso, essa separação física promove a formação de inúmeras gotículas lipídicas menores, que ficam mais acessíveis à ação da lipase pancreática, principal enzima que digere os triacilgliceróis da dieta. Para que esta enzima possa agir adequadamente, é preciso a participação da colipase e do bicarbonato. O bicarbonato neutraliza o quimo ácido vindo do estômago e aumenta o pH luminal até uma faixa ideal para a atividade digestiva das enzimas pancreáticas. A colipase também é secretada pelos ácinos pancreáticos, porém precisa ser ativada pela tripsina no lúmen duodenal. A colipase apresenta capacidade de ligar-se tanto à gordura, quanto à enzima lipase pancreática, afastando os sais biliares e permitindo a atividade digestiva da lipase (Figura 27).
A lipase pancreática hidrolisa os triacilgliceróis, formando ácidos graxos livres e 2-monoacilglicerol. Estes e outros produtos da digestão lipídica são envolvidos pelos sais biliares e fosfolipídeos, formando as micelas. As micelas são pequenos aglomerados lipídicos, porém com solubilidade no quimo, devido às propriedades anfipáticas dos sais biliares (Figura 27). Por isso, as micelas se difundem até as microvilosidades das células intestinais, facilitando a absorção dos lipídeos. As micelas se desfazem na borda em escova, de modo que os lipídeos são absorvidos, atravessando a membrana do enterócito, e os sais biliares permanecem no lúmen, podendo ser reutilizados emulsificando outros lipídeos no quimo ou formando novas micelas.
Figura 27: Formação de micelas. Após a ação enzimática da lipase/colipase, os produtos da digestão dos lipídeos são envolvidos pelos sais biliares formando as micelas (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
As moléculas anfipáticas tendem a se aglomerar com a parte hidrofóbica longe da água, formando espontaneamente micelas. Tanto os ácidos e sais biliares são anfipáticos como o colesterol e os fosfolipídeos, mas para que se formem as micelas é preciso uma concentração mínima de ácidos ou sais biliares, chamada de concentração micelar crítica. Na bile, os ácidos biliares formam micelas mistas, com fosfatidilcolina, o principal fosfolipídeo secretado na bile. A presença da fosfatidilcolina facilita a solubilização de outros lipídeos na micela, como vitaminas lipossolúveis e colesterol. Nas concentrações secretadas na bile os sais biliares sempre formam micelas. Se a concentração de colesterol secretada na bile for maior do que a quantidade máxima que pode ser solubilizada na micela, o colesterol pode precipitar e formar cálculos biliares.
Já vimos que os ácidos e sais biliares têm um importante papel na emulsificação de lipídios no intestino, possibilitando a sua digestão e que contribuem para facilitar sua absorção pelos enterócitos. Esses compostos podem ser ácidos biliares primários e secundários, e também podem ser conjugados nos hepatócitos. Os ácidos biliares primários (cólico e quenodesoxicólico) são sintetizados nos hepatócitos a partir do colesterol, através da adição ao núcleo esteroide de grupamentos hidroxila nos carbonos 7 e/ou 12 e de uma carboxila na cadeia lateral, aumentando sua solubilidade em água (Figura 28). Os ácidos biliares primários, cólico (3 hidroxilas) e o quenodesoxicólico (2 hidroxilas), correspondem a 80% dos a´cidos biliares secretados.
A atividade da enzima 7-alfa hidroxilase é ponto-chave na síntese de ácidos biliares e pode ser regulada pelos ácidos e sais biliares que chegam ao hepatócito pela circulação êntero-hepática (Figuras 30 e 33). Ocorre uma retroalimentação negativa, de modo que a síntese de novos ácidos biliares será inibida quando estiverem chegando sais biliares reabsorvidos nos capilares intestinais.
Figura 28: Síntese de ácidos biliares, a partir do colesterol. À esquerda, observa-se a molécula de colesterol e à direita o ácido cólico. Observe no ácido cólico a carboxila adicionada na cadeia lateral e as hidroxilas nos carbonos 7 e 12 (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Os ácidos biliares primários são sintetizados pelos hepatócitos e secretados na bile e, ao chegar no intestino, uma pequena parte deles sofre ação de bactérias da microbiota, sendo convertidos em ácidos biliares secundários, após sua desidroxilação (Figura 29). O ácido litocólico é produzido pela retirada da hidroxila do carbono 7 do ácido quenodesoxicólico e o ácido secundário desoxicólico se forma a partir da desidroxilação do ácido cólico, que é um ácido biliar primário.
Figura 29: Síntese de ácidos biliares. Os ácidos biliares primários são sintetizados a partir do colesterol no hepatócito e os secundários são sintetizados pela desidroxilação produzida pelas bactérias intestinais (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Os ácidos biliares primários, ainda no fígado, podem ser conjugados com os aminoácidos glicina ou taurina, formando compostos mais solúveis em água. Essa conjugação com glicina e taurina pelos hepatócitos origina os ácidos glico e tauroconjugados, respectivamente (Figuras 30 e 31).
Figura 30: Conjugação de ácidos biliares. Os ácidos biliares primários sintetizados pelo hepatócito e os secundários, que chegam ao hepatócito pela circulação êntero-hepática, são conjugados antes de serem secretados nos canalículos biliares (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Figura 31. Ácidos biliares. À esquerda, ácido cólico (ácido biliar primário). À direita, ácido glicocólico (ácido biliar primário conjugado com glicina) (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Chols%C3%A4ure.svg; https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Glycocholic_acid.png).
A conjugação com os aminoácidos diminui o pK dos ácidos biliares e eles ionizam mais facilmente (Figura 32). No pH da bile, praticamente todos os ácidos biliares conjugados ionizam e formam sais, em geral de sódio ou potássio. Por isso, muitas vezes os ácidos biliares conjugados são chamados de “sais biliares”, como se fossem sinônimos (Figura 32). As bactérias intestinais podem desconjugar os sais biliares, tornando-os menos hidrossolúveis.
Figura 32. Ácidos e sais biliares. À esquerda, ácido cólico ionizado (ácido biliar primário). À direita, colato de potássio (sal biliar, formado a partir do ácido cólico ionizado). (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cholat.svg; https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Potassium_cholate.png).
Após participarem da emulsificação de gorduras, no intestino delgado, a maioria dos sais biliares é absorvida pela mucosa intestinal, voltando ao fígado pela circulação êntero-hepática (Figura 33). Os sais biliares mais hidrofóbicos são absorvidos passivamente no intestino grosso, enquanto que os mais hidrofílicos são absorvidos através de transporte ativo acoplado ao sódio, no íleo terminal. Uma pequena fração de sais biliares não são reabsorvidos, sendo excretados nas fezes. Essa é uma forma importante de excreção de colesterol nas fezes.
Os sais biliares reabsorvidos retornam ao fígado através da circulação êntero-hepática, onde são captados pelo hepatócito a partir dos capilares sinusoides e podem ser novamente incorporados à bile, após conjugação com taurina ou glicina (Figuras 30 e 31). Alguns dos ácidos biliares secundários podem ser hidroxilados, formando ácidos biliares primários novamente, antes de serem ressecretados na bile.
A reutilização dos sais biliares pelos hepatócitos é muito importante para manter a digestão e absorção de lipídeos durante e logo após uma refeição, uma vez que 95% dos sais biliares voltam ao fígado. Durante uma refeição a circulação dos sais biliares via hepatócito→bile→intestino delgado e de volta via intestino → hepatócito pode ocorrer cerca de 5 a 10 vezes, aumentando a quantidade de sais biliares disponíveis no lúmen intestinal. Assim, apenas 5% dos ácidos biliares são repostos por nova síntese nos hepatócitos, a partir do colesterol.
A circulação êntero-hepática consiste em um sistema onde o sangue venoso, rico em nutrientes, proveniente dos capilares do trato intestinal é carregado para o fígado pela veia porta hepática. Esta veia ao invés de levar o sangue venoso de volta ao coração leva-o ao fígado, permitindo que o órgão receba nutrientes que foram absorvidos no trato intestinal (Figura 33) além de sais biliares, toxinas e outros solutos absorvidos na mucosa intestinal.
Figura 33: Circulação êntero-hepática. Os sais biliares e os nutrientes absorvidos na mucosa intestinal chegam ao fígado por meio da veia porta pela circulação êntero-hepática. Os sais biliares podem ser ressecretados nos canalículos biliares após processamento pelos hepatócitos (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Regulação da secreção biliar
O principal regulador da secreção biliar são os próprios sais biliares que chegam ao fígado pela circulação êntero-hepática. Como já vimos, a síntese de ácidos biliares é inibida no período digestório, uma vez que a sua reabsorção intestinal é alta neste período. A chegada de sais biliares ao hepatócito inibe a atividade da enzima colesterol-alfa-7 hidroxilase, inibindo a síntese de novos ácidos biliares primários. Porém, a captação desses sais biliares pelo hepatócito e sua ressecreção na bile são estimuladas, o que acaba aumentando o fluxo de bile caracterizando um forte efeito colerético dos sais biliares reabsorvidos. O efeito de aumentar o fluxo de bile é chamado de colerético.
Por outro lado, no período interdigestivo, entre as refeições, a síntese de novos ácidos biliares aumenta e sua secreção n é baixa. Neste período a vesícula biliar está relaxada e a bile está sendo concentrada e armazenada, até que na próxima refeição os nutrientes presentes no quimo estimulem a sua contração e relaxamento do esfíncter de Oddi, via CCK, iniciando novo ciclo com a chegada da bile ao duodeno.
Após uma refeição, o pH luminal do intestino delgado é bastante baixo, uma vez que o quimo acaba de sair do estômago, o qual possui um pH muito ácido. A queda do pH estimula as células S na mucosa intestinal, as quais liberam secretina nos capilares intestinais. A secretina atua nos ductos pancreáticos aumentando a secreção de bicarbonato e atua também nos ductos biliares alcalinizando a bile e aumentando seu fluxo (Figura 24).
Outro hormônio importante na regulação da secreção biliar é a colecistocinina (CCK), a qual é secretada pelas células da mucosa intestinal quando estimuladas por lipídeos e proteínas parcialmente digeridos presentes no lúmen. O nome colecistocinina tem origem no seu efeito na vesícula biliar, pois significa “movimento da vesícula biliar” (cole=bile, cisto=bexiga, vesícula, e cinina=movimento). Este efeito de contrair a vesícula biliar é chamado de efeito colagogo.
Já vimos que a CCK retarda o esvaziamento gástrico e estimula a secreção enzimática nos ácinos pancreáticos. Acrescentamos agora seu efeito de contrair a vesícula biliar e relaxar o esfíncter de Oddi (hepatopancreático), permitindo que a bile armazenada na vesícula biliar chegue ao lúmen do intestino delgado (Figura 34).
Figura 34: Ações da CCK. Observe que a colecistocinina (CCK) é secretada pela mucosa intestinal e atinge seus órgãos-alvo via circulação êntero-hepatica (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Effects_of_CCK_on_the_gastrointestinal_tract.svg
Na fase cefálica, estímulos olfativos, gustatórios ou mesmo visuais promovem ativação do sistema nervoso parassimpático que, por meio do nervo vago estimula todas as secreções e a motilidade do tubo digestório. Na secreção biliar, o nervo vago é estimulatório embora seu efeito colerético e colagogo não seja tão importante quanto dos hormônios secretina e CCK.
Para pensar e pesquisar: Se a maior parte dos lipídeos são digeridos e absorvidos, quais as possíveis causas para termos a presença de gorduras nas fezes (esteatorreia)?
Metabolismo da bilirrubina
A bilirrubina é um produto da degradação da hemoglobina e é secretada para a bile para sua excreção. A bilirrubina é derivada do grupo heme, liberado por hemácias envelhecidas ou de outras proteínas que contenham o grupo heme. O grupo heme é captado pelas células fagocitárias do baço, medula óssea e células de Kupffer do fígado. A enzima heme-oxigenase retira o ferro e forma biliverdina, a qual é convertida em bilirrubina pela enzima biliverdina redutase. O ferro se liga à ferritina e é armazenado no fígado.
A bilirrubina livre, também chamada de indireta ou não-conjugada, é pouco hidrossolúvel. Por isso, a bilirrubina chega ao fígado pela circulação sanguínea ligada à albumina, sendo a maior parte conjugada com ácido glicurônico e secretada nos canalículos biliares. Esta forma da bilirrubina é mais hidrossolúvel e menos tóxica do que a não-conjugada (livre) que é hidrofóbica. Por ser solúvel em lipídeos, a bilirrubina livre pode ter efeitos tóxicos no sistema nervoso, especialmente de recém-nascidos.
A bilirrubina conjugada chega ao intestino grosso onde é desconjugada por bactérias anaeróbias e origina o urobilinogênio. Cerca de 15% do urobilinogênio são absorvidos no intestino grosso e chegam ao fígado pela circulação êntero-hepática. O hepatócito conjuga e secreta o urobilinogênio na circulação sistêmica e uma pequena parte dele é excretado na urina como urobilina. O urobilinogênio que permanece no lúmen intestinal é oxidado em urobilina ou estercobilina e excretado nas fezes (Figura 35).
Figura 35: Metabolismo da bilirrubina. A bilirrubina livre é captada e conjugada nos hepatócitos. Após sua secreção na bile, a bilirrubina chega ao intestino grosso onde é convertida em urobilinogênio, que pode ser reabsorvido ou eliminado nas fezes (Fonte: Aprendendo Fisiologia).