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DIGESTÃO

  Neste capítulo, vamos abordar principalmente a digestão dos nutrientes, uma vez que a motilidade, as secreções digestórias e a absorção já foram estudadas em outros capítulos. A absorção é o transporte de substâncias do lúmen do trato gastrointestinal (TGI) para a circulação sanguínea. Para isso, a molécula precisa atravessar a parede do TGI. Para podermos assimilar os nutrientes, eles precisam passar pelo processo da digestão, ou seja, as macromoléculas não podem ser absorvidas diretamente sem se transformarem em moléculas menores. Para ocorrer a digestão, é necessário a secreção para o lúmen de enzimas e outras moléculas que auxiliam no processo digestivo. A motilidade das paredes do TGI é outro processo necessário, não apenas para transportar o conteúdo luminal com a velocidade adequada ao longo do TGI, como participando da digestão mecânica.

  Antes de avançarmos na digestão vamos revisar alguns pontos essenciais.

  O que é digerir?

  Digerir é transformar algo, desfazer, desconstruir, dividir, decompor substâncias por meio de agentes químicos, mecânicos, térmicos ou biológicos.

  Onde ocorre a digestão?

  A digestão ocorre na cavidade oral, no lúmen do estômago e do intestino delgado, na borda em escova dos enterócitos e no citoplasma dos enterócitos.

  Como ocorre a digestão?

  A digestão ocorre principalmente por ação de enzimas digestivas, embora a digestão mecânica também seja importante. As enzimas são secretadas pelas glândulas salivares, mucosa gástrica e pâncreas exócrino. A borda em escova dos enterócitos também possui enzimas mas estas não são secretadas para o lúmen, permanecendo fixas na membrana luminal. Todas as enzimas do nosso TGI são hidrolases, ou seja, fazem hidrólise para decompor as macromoléculas em moléculas menores que possam ser absorvidas (Figura 1).

  A hidrólise envolve a reação de uma molécula de água (H-O-H) com a substância a ser digerida. Parte da molécula de água (OH) se une a um componente da substância (R1) e parte (H) ao outro componente (R2). 

Figura 1. Digestão por hidrólise. Observe que R1 e R2 foram separados em dois componentes após a adição de água (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hydrolysis.png).

  A digestão mecânica acontece principalmente na cavidade oral por meio da mastigação, a qual rompe as fibras e tritura os alimentos, por meio da ação mecânica dos dentes. A mastigação atua junto com a secreção salivar para formar o bolo alimentar. As contrações musculares que ocorrem na parte distal do estômago e os movimentos de segmentação no intestino delgado também contribuem para a digestão mecânica, a qual atua de forma complementar à digestão química realizada pelas enzimas. Muitas vezes, a redução do tamanho do alimento em pedaços menores pela ação mecânica expõe as ligações químicas das moléculas que serão rompidas por ação das enzimas.

  Vamos tratar neste capítulo da digestão química, mas para isso precisamos conhecer a estrutura química das moléculas que precisamos digerir e as características das enzimas que vão realizar essa digestão. Para que as enzimas possam agir é preciso que o pH luminal seja adequado. Algumas atuam em pH ácido e outras em pH mais alcalino.

  As macromoléculas que precisam ser digeridas são os carboidratos, proteínas e lipídios, além do DNA e RNA. As vitaminas, a água e os íons são absorvidos do lúmen do TGI até os capilares sanguíneos, mas não passam por processo de digestão antes da absorção, com exceção de algumas vitaminas lipossolúveis que precisam ser desesterificadas.

  DIGESTÃO DE CARBOIDRATOS

  Vamos começar conhecendo os carboidratos da dieta. Cerca de 50 a 60% da dieta é composta de carboidratos, os quais são relativamente baratos, comparando com as proteínas, por exemplo. A maior parte dos carboidratos que ingerimos é composta de amido, presente em grãos, cereais (trigo, milho, arroz) e tubérculos (batata, mandioca, cenoura), seguido da sacarose (açúcar da cana) e lactose (açúcar do leite). A ingestão de glicogênio e de celulose (fibras) é bastante variável em quantidade.

  Os carboidratos são constituídos por unidades de 1 carbono:2 hidrogênios:1 oxigênio (C:H2:O), que se repetem n vezes. Por isso são chamados de carbo + hidratos, ou hidratos de carbono. Também podem ser chamados de glicídeos, sacarídeos ou açúcares. Os monossacarídeos, também chamados de açúcares simples, são as moléculas menores dos carboidratos e que podem ser absorvidas diretamente no epitélio intestinal. Portanto, a digestão dos carboidratos deverá ocorrer até que resulte apenas em unidades chamadas de monossacarídeos, os monômeros dos carboidratos. Os monossacarídeos são a glicose (80%), a galactose (5%) e a frutose (15%). A glicose é armazenada como glicogênio, pode dar origem aos outros monossacarídeos e pode ser obtida a partir de substratos não glicídicos, como alguns aminoácidos.

  Na Figura 2, os números indicam os 6 carbonos da molécula de glicose (hexose). Esses números são importantes para entendermos as ligações químicas que precisarão ser rompidas na digestão (ligações glicosídicas 1-4, entre o carbono 1 de uma glicose e o carbono 4 da outra molécula de glicose e ligações 1-6, entre o carbono 1 de uma glicose e o 6 de outra).

Figura 2. Molécula de glicose. Observe os números que indicam os carbonos da molécula. (Fontes: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Glucose_Haworth.png https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Glucose_Fisher_to_Haworth.gif).

  As moléculas de monossacarídeos podem estar associadas formando polímeros, os oligossacarídeos e os polissacarídeos. Os polímeros não podem ser absorvidos diretamente, antes de sofrer ação das enzimas secretadas no lúmen e as da borda em escova do enterócito, originando os monossacarídeos. Os oligossacarídeos são constituídos por 2 a 10 monômeros (oligo = poucos) e podem ser ingeridos na dieta, ou originados quando os polissacarídeos são digeridos. Nesta categoria estão incluídas as alfa-dextrinas (3 a 8 monômeros), que possuem ligações alfa 1-4 e alfa 1-6 (Figura 5), a maltotriose (só ligações 1-4), os dissacarídeos (Figuras 3 e 4), entre outros. Os dissacarídeos mais importantes são a lactose (glicose+glactose), a sacarose (glicose+frutose) e a maltose (glicose+glicose). Os oligossacarídeos também compõem as glicoproteínas e glicolipídeos, presentes nas membranas plasmáticas ou atuando em inúmeras atividades extracelulares.

Figura 3. Estrutura da sacarose (dissacarídeo). Observe que a sacarose é composta de uma molécula de glicose (hexose) e uma de frutose (pentose) unidas por uma ligação glicosídica alfa1-4 (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sacarosa.PNG).

Figura 4. Estrutura da maltose (dissacarídeo). Observe que a maltose é composta de duas moléculas de glicose unidas por uma ligação glicosídica alfa 1-4 (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Maltose_Haworth.sv).

Figura 5. Estrutura da dextrina (oligossacarídeo). Observe que a alfa-dextrina é composta de ligações alfa 1-4 (cadeia reta) e de ligações alfa 1-6 (ramificação) (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Dextrin_skeletal.svg).

  Acima de 10 monômeros, chamamos os carboidratos de polissacarídeos, como o amido, o glicogênio e a celulose. O amido é um polímero de glicose de origem vegetal, com peso molecular de 100 mil a 1 milhão kD, constituído de dois componentes, a amilopectina e a amilose (Figuras 6 e 7).  A amilopectina é a maior parte do amido (80%) e contém monômeros de glicose distribuídos em cadeias retas e ramificadas e a amilose é constituída apenas de cadeias retas.

Figura 6. Estrutura da amilose. (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Amylose5.svg).

Figura 7. Estrutura da amilopectina.  

(Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Amylopectine.png).

  O glicogênio também é um polímero de glicose, mas de origem animal. O glicogênio é uma forma de armazenamento de glicose no músculo e no fígado de animais. O glicogênio é semelhante à amilopectina, pois possui cadeias retas e ramificadas, mas possui mais ramificações e peso molecular maior (Figura 8). As cadeias retas contêm ligações alfa 1-4 entre cada monômero de glicose e as ramificações da cadeia se dão em ligações alfa 1-6 (Figura 9).

Figura 8. Estrutura do glicogênio. (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Glykogen.svg).

Figura 9. Estrutura do glicogênio. Observe as ligações alfa 1-4 nas cadeias retas e alfa 1-6 nas ramificações (verde) (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Glycogen.png).

  Outro polímero de glicose presente na dieta é a celulose, constituída de cadeias retas de glicose unidas por ligações beta 1-4, mas os seres humanos não possuem a enzima necessária para romper essas ligações. Por isso, a celulose, a hemicelulose e as pectinas não são digeridas e constituem as fibras da dieta. 

     Para pensar e pesquisar: Se as fibras não são digeridas, qual o seu papel no funcionamento do trato gastrointestinal?

  A digestão dos carboidratos inicia na cavidade oral por ação da enzima amilase salivar. Esta enzima atua por pouco tempo, pois logo é deglutida junto com o bolo alimentar e acaba sendo inativada pelo pH ácido no lúmen do estômago (pH abaixo de 4 já inativa as amilases). Mesmo assim, pode permanecer atuando no interior do bolo alimentar aproximadamente 30 a 60 minutos, até que os movimentos gástricos o misturem com o pH ácido do lúmen. Seu pH ideal é cerca de 6,9, mantido pela secreção de bicarbonato pelos ductos salivares.

  Quando o quimo alcança o duodeno, a secreção pancreática de bicarbonato neutraliza o ácido e a amilase pancreática continua a digestão dos carboidratos. A amilase pancreática é semelhante à amilase salivar e ambas atuam rompendo ligações alfa 1-4, ou seja, as ligações que ocorrem nas cadeias retilíneas dos polissacarídeos (Figuras 10 e 11). Tanto a amilase salivar quanto a pancreática são endoamilases (endoglicosidases), pois atuam em ligações internas da molécula e não nas extremidades. A amilase pancreática é secretada na forma ativa pelos ácinos pancreáticos e possui grande atividade catalítica, sendo que completa em poucos minutos a digestão dos polissacarídeos que chegam ao duodeno. 

Figura 10. Digestão de carboidratos. Ação das amilases nas ligações alfa 1-4 internas (Fonte: Aprendendo Fisiologia).

Figura 11. Molécula de glicogênio. Observe as ligações alfa 1-4 nas cadeias retas e a ligação alfa 1-6 nas ramificações (Fonte: Aprendendo Fisiologia).

  Apesar da amilase salivar poder digerir até 70% dos carboidratos, ela não é indispensável para a digestão dos carboidratos por que ela age por pouco tempo e a amilase pancreática é bastante eficaz. Porém, ela passa a ser mais importante quando há insuficiência pancreática ou em recém-nascidos, quando a secreção de enzimas pancreáticas ainda não está ocorrendo de forma plena.

Você Sabia?

  O resultado da ação das amilases sobre os polissacarídeos é a formação de moléculas de oligossacarídeos, como maltose, isomaltose, maltotriose, malto-oligossacarídeos (4 a 9 moléculas de glicose) e alfa-dextrinas. Estes, serão digeridos pelas enzimas presentes na membrana luminal dos enterócitos (borda em escova): as dissacaridases (sacarase, lactase, maltase) e outras oligossacaridases (isomaltase ou dextrinase, glicoamilase) (Figuras 12, 13 e 14). A trealase digere ligações 1-1 da trealose, um dissacarídeo presente em fungos, algas e insetos. A dextrinase atua sobre ligações alfa 1-6 e alfa 1-4. A glicoamilase digere ligações alfa 1-4 das extremidades não redutoras, por isso é classificada como exoglicosidase.

Figura 12. Digestão de carboidratos. Ação das oligossacaridases da borda em escova do enterócito nas ligações alfa 1-4 e alfa 1-6 (Fonte: Aprendendo Fisiologia).

Figura 13. Digestão da lactose pela lactase, resultando em uma molécula de glicose e uma de galactose. (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lactose_hydrolysis.svg).

Figura 14. Digestão da maltose por hidrólise, resultando em duas moléculas de glicose (Fonte: domínio público).

  As enzimas da borda em escova são sintetizadas nos enterócitos e se localizam na membrana luminal, onde ficam ancoradas. Algumas das enzimas glicolíticas da borda em escova são bem específicas para alguns substratos enquanto outras não. Por exemplo, a sacarase e a lactase digerem totalmente seus substratos, sacarose e lactose, respectivamente. Já a maltose e a maltotriose, podem ser digeridas pela maltase (25%), pela sacarase (25%) e pela dextrinase (50%). A dextrinase (isomaltase) digere 95% das dextrinas e 100% das ligações alfa 1-6. Sacarase e isomaltase formam um complexo proteico, pois são originadas da mesma proteína da borda em escova. A maltase e a glicoamilase também formam um complexo proteico na membrana do enterócito, com atividade catalítica em ligações glicosídicas alfa 1-4. Este complexo parece digerir melhor os carboidratos fermentáveis (FODMAPS), os quais possuem ligações alfa 1-2, 1-3 e 1-4. A lactase cliva ligações beta 1-4 entre a glicose e a galactose, e possui baixa atividade em adultos, podendo levar à dificuldade na digestão da lactose. Aproximadamente 8% dos carboidratos não são digeridos no intestino delgado e passam para o cólon.

  Os carboidratos que não são digeridos adequadamente, como alguns oligossacarídeos chamados de FODMAPS, podem produzir distensão abdominal e flatulência, a partir da produção de gases (CO2 e H2) pelas bactérias do cólon na fermentação desses sacarídeos.  O acúmulo de carboidratos não digeridos no lúmen intestinal pode causar dor abdominal e até diarreia osmótica.

Você Sabia?

  Uma vez que a digestão dos carboidratos tenha produzido os monossacarídeos, a absorção intestinal dos carboidratos pode começar. Isso é um pouco diferente do que ocorre com a digestão e absorção das proteínas. A absorção de proteínas pode ocorrer quando a digestão produziu aminoácidos, dipeptídeos ou tripeptídeos; e, até mesmo pequenos peptídeos podem ser absorvidos no epitélio intestinal. 

  DIGESTÃO DE PROTEÍNAS

  As proteínas são componentes importantes da dieta e também são sintetizadas nas células vivas, a partir da transcrição de genes e da tradução do RNAm.  As proteínas são constituídas de cadeias de aminoácidos, os quais são a unidade estrutural das proteínas, seus monômeros (Figura 15).

Figura 15. Estrutura das proteínas. Observe a cadeia de aminoácidos, cada um deles indicado por um código de três letras (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tertiary_protein_structure.png).

  A estrutura de todos os aminoácidos inclui um átomo de carbono ao qual se unem o terminal carboxila (COOH), o grupo amino (NH2), um hidrogênio e um grupo variável entre os aminoácidos, que chamamos de R (Figura 16). Todas as proteínas são constituídas a partir de 20 aminoácidos, sendo que os nove aminoácidos que não podem ser sintetizados no nosso organismo são chamados de essenciais. Estes precisam ser fornecidos pela dieta.

Figura 16. Estrutura dos aminoácidos. Observe o terminal NH2 e o terminal COOH (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:AminoAcidball.svg).

  A estrutura primária das proteínas envolve a ligação peptídica entre aminoácidos, unindo o terminal amino (NH2) de um aminoácido com o terminal carboxila (COOH) do outro, formando uma cadeia de aminoácidos (Figuras 17 e 18). 

Figura 17. Ligação peptídica entre dois aminoácidos. (Fonte: Aprendendo Fisiologia).

  As proteínas são polímeros de aminoácidos, sendo que quando possuem poucos aminoácidos são chamadas de peptídeos. Quando são compostos por dois ou três aminoácidos, eles são chamados de dipeptídeo e tripeptídeo, respectivamente. Entre 10 e 100 aminoácidos chamamos de polipeptídeo.

Figura 18. Estrutura primária das proteínas. Observe a cadeia de aminoácidos unidos por ligações peptídicas (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Protein_primary_structure_gl.svg).

  A interação entre os aminoácidos da estrutura primária produz uma estrutura mais estável, chamada de estrutura secundária da proteína, formando uma espiral (alfa hélice) ou uma folha pregueada (Figura 19). A estrutura secundária da proteína se dobra sobre si mesma adquirindo a estrutura terciária, que é a forma tridimensional da molécula. Ainda, a proteína pode se agrupar com outras cadeias de aminoácidos, chamadas de subunidades, formando a estrutura quaternária (Figura 19).

Figura 19. Estrutura das proteínas. (Fonte: domínio público).

  A digestão das proteínas envolve enzimas proteolíticas chamadas de proteases ou peptidases. Estas podem ser endopeptidases ou exopeptidases. As endopeptidases atuam no interior da cadeia de aminoácidos e as exopeptidases atuam nas extremidades da cadeia proteica, sendo chamadas de aminopeptidases ou carboxipeptidases, quando atuam no terminal amino ou carboxi, respectivamente (Figura 20).

Figura 20. Local de ação das proteases ou peptidases. Observe o local de ação da endopeptidase e das exopeptidases (Fonte: Aprendendo Fisiologia).

  A digestão das proteínas ocorre pela ruptura das ligações peptídicas entre os aminoácidos das cadeias peptídicas (Figura 21). Além das proteínas provenientes da dieta, o tubo digestório também digere proteínas secretadas para o lúmen e as proteínas de células do revestimento epitelial do TGI que se desprendem e são substituídas por novas células. Praticamente todas as proteínas são digeridas e absorvidas no intestino delgado, podendo ser excretadas nas fezes uma pequena parte das proteínas originadas no cólon, como as proteínas bacterianas.

  A digestão das proteínas inicia no lúmen gástrico, a partir da ação da enzima pepsina. Esta enzima é secretada de forma inativa (pepsinogênio), pelas células zimogênicas ou principais da mucosa gástrica. A ativação do pepsinogênio em pepsina se dá no lúmen gástrico pelo pH ácido. Além disso, a pepsina é autocatalítica, ativando mais moléculas de pepsinogênio. O pH ideal de ação da pepsina é entre 1,8 e 3,5 e ela é inativada quando o pH fica acima de 5.

Figura 20. Digestão de proteínas. Observe que a adição de uma molécula de água (hidrólise) a um dipeptídeo rompe a ligação peptídica e separa os dois aminoácidos (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Peptide_bond_cleavage.svg).

  É importante ressaltar que o baixo pH é importante também para desnaturar as proteínas a serem digeridas, de modo a expor as ligações peptídicas para permitir a clivagem enzimática dessas ligações (Figura 22). A pepsina é importante por digerir o colágeno, facilitando o acesso de outras enzimas aos tecidos. A pepsina digere aproximadamente 15% das proteínas ingeridas, produzindo principalmente peptídeos e poucos aminoácidos, por isso é necessário que a digestão das proteínas continue para reduzir os peptídeos a aminoácidos, facilitando a absorção intestinal.  Esses oligopeptídeos produzidos são importantes para estimular a secreção dos hormônios gastrina e CCK (colecistocinina). A gastrina estimula a secreção de HCl, mantendo baixo o pH gástrico e a CCK é o principal estimulador da secreção de enzimas pancreáticas.

Figura 22. Desnaturação de uma proteína. Observe que após a desnaturação a estrutura da proteína é “desenrolada”, expondo suas ligações peptídicas (Fonte: domínio público).

  A digestão das proteínas continua no lúmen duodenal por ação das enzimas pancreáticas, as quais também são secretadas em sua forma inativa, como zimogênios. A chegada do quimo ácido no duodeno estimula a secreção de secretina pela mucosa intestinal. Este hormônio duodenal é forte estimulador da secreção de bicarbonato pelos ductos pancreáticos, o qual neutraliza o ácido do quimo e permite a ação das enzimas pancreáticas no pH ideal de 6,5-8,0 (Figura 23).

Figura 23: Enzimas proteolíticas e seu pH ideal de ação (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Enzyme-pH.svg)

  A tripsina é a principal enzima proteolítica do pâncreas, uma vez que ativa todas as demais enzimas pancreáticas que digerem proteínas. A tripsina, a quimiotripsina e a elastase são endopeptidases, enquanto a carboxipeptidase é uma exopeptidase.

  A tripsina também é autocatalítica, o que faz com que rapidamente muitas moléculas de tripsinogênio sejam ativadas e, consequentemente, também são ativadas as demais enzimas proteolíticas secretadas de forma inativa pelos ácinos pancreáticos.

     Para pensar e pesquisar: O que são proenzimas?

  É importante que as enzimas proteolíticas sejam secretadas de forma inativa para evitar que ocorra digestão do parênquima pancreático. Para isso, a tripsina também é secretada de forma inativa e só será ativada quando chegar ao duodeno, por ação da enzima enterocinase, também chamada de enteropeptidase, presente na borda em escova do enterócito. Para evitar a ativação precoce da tripsina dentro do pâncreas, os ácinos também secretam um peptídeo denominado “inibidor da tripsina”.

  Apesar da ação das enzimas proteolíticas pancreáticas ser bem eficiente, e produzir oligopeptídeos e aminoácidos, a digestão das proteínas ainda deve passar por mais duas etapas: as peptidases da borda em escova e as enzimas do citoplasma dos enterócitos. As proteases da borda em escova estão presentes nas vilosidades do jejuno e são principalmente aminopeptidases e dipeptidases.  Diferente dos carboidratos, que só podem ser absorvidos como monossacarídeos, as proteínas podem ser absorvidas na forma de dipeptídeos e tripeptídeos, os quais serão digeridos por enzimas citoplasmáticas.

  Além dos carboidratos e proteínas, outras macromoléculas precisam ser digeridas, como os lipídeos, DNA e RNA. O pâncreas também secreta enzimas DNAses e RNAses e lipases.

  DIGESTÃO DE LIPÍDEOS

  Os lipídeos são moléculas constituídas principalmente de átomos de hidrogênio e carbono unidos por ligações covalentes neutras, por isso são muito pouco solúveis na água (hidrofóbicos). Para solubilizar lipídeos devemos usar solventes orgânicos como clorofórmio, éter, acetona, benzeno, etc. Os lipídeos possuem estruturas e funções bastante variadas nos organismos vivos, desde serem constituintes da membrana plasmática e de vesículas, precursores de hormônios e mediadores de sinalização intracelular, isolantes térmicos, elétricos e mecânicos, além de exercerem importantes funções metabólicas e etc.

  Os lipídeos de origem animal e vegetal estão presentes na dieta, sendo os principais os triacilgliceróis, o colesterol e os fosfolipídeos, além de vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K). No lúmen do TGI, também vão estar presentes os lipídeos secretados na bile e os provenientes de células do revestimento epitelial descamadas e de bactérias. 

  Os triacilglicerois são os principais lipídeos da dieta, e representam o principal estoque de energia de vegetais e animais, devido a seu alto valor calórico (mais que o dobro dos carboidratos e das proteínas). Os triacilgliceróis, também denominados triglicerídeos, ou apenas “gorduras”, são gorduras neutras, pois não possuem cargas elétricas nem polaridade. Os triacilglicerois são constituídos por três cadeias de ácidos graxos unidos por ligações éster a um esqueleto de três carbonos, o glicerol (Figura 24). Chamamos de monoacilglicerol quando tivermos apenas um ácido graxo esterificado com o glicerol e diacilglicerol quando tivermos dois ácidos graxos unidos ao glicerol.

Figura 24: Estrutura dos triglicerídeos. Observe que a molécula de triacilglicerol é formada por três ácidos graxos unidos ao glicerol por ligações éster (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Reacci%C3%B3n_de_s%C3%ADntesis_de_un_triacilglicerol.png).

  Os ácidos graxos são ácidos carboxílicos (com um grupo carboxila na extremidade) com cadeias lineares de hidrocarbonetos de diferentes tamanhos. Eles são constituídos de 3 a 24 átomos de carbono, sendo classificados como de cadeia curta (3 a 6 carbonos), cadeia média (8 a 12 carbonos), cadeia longa (12 a 18) e muito longa (mais de 18 carbonos). Os ácidos graxos podem ter só ligações simples (saturados) ou uma ou mais ligações duplas (insaturados) (Figura 25). Quando há mais de uma ligação dupla são chamados de poliinsaturados. Os óleos vegetais possuem mais ácidos graxos insaturados e a maioria da gordura animal é rica em ácidos graxos saturados. A maior parte dos triacilgliceróis são constituídos por ácidos graxos de cadeia longa (16 a 18 carbonos).

Figura 25: Ácidos graxos saturados e insaturados. Observe a cadeia dos ácidos graxos saturados formada por ligações simples (a) e a dos insaturados contendo uma ligação dupla (b) (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:221_Fatty_Acids_Shapes-01.jpg).

  Os ácidos graxos são esterificados com glicerol, esfingosina ou colesterol, formando uma ligação éster com a OH dos álcoois. Quando não esterificados, são chamados de ácidos graxos livres. 

  O colesterol é o principal esterol do organismo animal, o qual participa da composição da membrana plasmática e dá origem aos sais biliares e hormônios esteroides, como cortisol, testosterona, etc.  O colesterol pode ser sintetizado a partir de Acetil-CoA e faz parte da dieta, predominantemente de origem animal. Os esteroides possuem quatro anéis fusionados (ciclopentanoperidrofenantreno), conhecidos como núcleo esteroide. A presença de uma hidroxila em C3, permite a reação com ácidos graxos. Assim, a maior parte do colesterol encontra-se esterificado com ácidos graxos, já que esta é a sua forma preferencial de armazenamento e transporte (Figura 26). 

Figura 26. Estrutura do colesterol. Observe à esquerda a OH no carbono 3 do colesterol e à direita o colesterol esterificado, com a ligação éster do ácido graxo nessa hidroxila. (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cholesterol_with_numbering.svg https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cholesterol_Oleate.png).

  Outro componente importante dos lipídeos presentes no lúmen do tubo gastrointestinal são os fosfolipídeos. Muitos deles são constituintes das membranas plasmáticas, formando a bicamada lipídica descrita no modelo do mosaico fluido (Figura 27). A estrutura geral dos fosfolipídeos é semelhante aos triacilgliceróis pois são ésteres do glicerol, porém contendo um resíduo de fosfato. São anfipáticos, pois possuem uma parte da molécula hidrofóbica (ácidos graxos) e outra hidrofílica (grupo fosfato, ligado a um grupo usualmente polar). 

Figura 27. Estrutura dos fosfolipídeos. Observe à esquerda a cabeça polar (hidrofílica) e a cauda apolar (hidrofóbica) e à direita sua distribuição em bicamada na membrana plasmática (Fonte: Pré-Fisiologia).

  O grupo fosfato pode ligar-se a diferentes grupos, como a colina, etanolamina ou serina. Observe, na Figura 28, a fosfatidilcolina, importante fosfolipídeo presente nas membranas plasmáticas, que atua como componente do surfactante e está presente na secreção biliar.

Figura 28. Estrutura da fosfatidilcolina (fosfolipídeo). Observe as duas cadeias de ácidos graxos unidos ao glicerol e o grupo fosfato unido ao glicerol e à colina (Fonte: Domínio público).

  A primeira etapa da digestão de gorduras é a ação das lipases pré-duodenais, também chamadas de lipases ácidas: lipase lingual e lipase gástrica. Estas enzimas atuam em pH entre 3 e 6, e são secretadas pelas glândulas serosas de von Ebner nas papilas circunvaladas da língua e pela célula principal da mucosa gástrica, respectivamente. Elas atuam preferencialmente nos triacilgliceróis com ácidos graxos de cadeia curtas ou médias.  São mais importantes em neonatos, já que as enzimas pancreáticas ainda não são secretadas em grande quantidade nesse período e em crianças que tomam leite de vaca, o qual possui alto percentual desse tipo de cadeia. Também são importantes quando há insuficiência pancreática, apesar do pH alcalino desfavorável para sua ação no duodeno. 

  Estas enzimas são responsáveis por 10 a 15% da digestão dos lipídeos e os produtos da sua ação sobre os triacilgliceróis, como o diacilglicerol e ácidos graxos, são estimuladores da secreção de hormônios, como a colecistocinina (CCK), secretina e peptídeo inibidor gástrico (PIG). Esses hormônios retardam o esvaziamento gástrico e estimulam a secreção enzimática e de sais biliares no duodeno, os quais são fatores fundamentais para a continuidade da digestão dos lipídeos no intestino delgado.

  Os lipídeos não se dissolvem no ambiente aquoso do lúmen e tendem a se agrupar formando gotas de gordura. Como as enzimas são hidrossolúveis e não têm acesso ao interior das gotas de gordura, a ação enzimática se dá apenas na superfície, na interface óleo/água. Assim, para que as enzimas lipolíticas atuem de forma mais eficaz é preciso que as gotas de lipídeos sejam subdivididas em pequenas gotículas, formando uma emulsão (Figura 29). 

Figura 29. Emulsão. Em A, observe as duas fases, óleo (II) e água (I). Na parte B da figura, vemos que se formou uma emulsão, com a dispersão de gotículas de gordura na água (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Emulsions.svg).

  Essa emulsificação ocorre a partir de movimentos vigorosos, como da mastigação e motilidade gástrica antral, mas é essencial que moléculas anfipáticas se coloquem na superfície das gotículas para que elas não voltem a se agrupar formando gotas lipídicas maiores novamente. Essa estabilização da emulsão se dá principalmente por ação de fosfolipídeos e sais biliares, os quais envolvem as gotículas de modo que sua porção hidrofílica se dispõe para fora, em contato com a água e a parte hidrofóbica se volta para dentro, em contato com os lipídeos (Figura 30).

Figura 30. Emulsão estabilizada. Os sais biliares são anfipáticos e emulsificam os lipídeos, tornando-os mais solúveis no quimo aquoso (Fonte: Aprendendo Fisiologia).

  Com a emulsificação, os glóbulos de gordura diminuem seu diâmetro cerca de 20 vezes, o que aumenta a área de superfície onde agem as enzimas lipolíticas. As lipases atuam apenas na superfície da gota de gordura, na interface óleo-água, mas não conseguem atuar na presença de sais biliares pois são repelidas por eles. Por isso, a colipase é indispensável para que os sais biliares sejam afastados permitindo a ancoragem da lipase pancreática e sua ação digestiva (Figura 31).

Figura 31. Ação da lipase e da colipase. Os sais biliares são anfipáticos e emulsificam os lipídeos, mas a lipase só consegue atingir os lipídeos com ajuda da colipase (Fonte: Aprendendo Fisiologia).

  Assim, o ambiente no lúmen do duodeno é favorável para que ocorra a maior parte da digestão dos nutrientes. Os hormônios CCK e secretina foram liberados, por estímulo dos nutrientes parcialmente digeridos, levando à secreção dos sais biliares e enzimas pancreáticas para o lúmen intestinal. Para completar, os ductos pancreáticos secretam bicarbonato, por estímulo da secretina, e neutralizam o pH do quimo que chega ácido a partir do estômago. Os sais biliares emulsificam as gorduras, as enzimas pancreáticas começam a agir na gordura emulsificada e o pH neutro favorece a ação enzimática.

  A maior parte dos lipídeos da dieta é composta de triacilgliceróis. Sua hidrólise rompe as ligações dos ácidos graxos com o glicerol (Figuras 32), produzindo 2-monoacilglicerol e ácidos graxos.

Figura 32: Hidrólise do triacilglicerol. Observe que a hidrólise do triacilglicerol produz glicerol e ácidos graxos (Fonte:  https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Triglycerides_hydrolysis_reaction.svg).

  A lipase pancreática também é chamada de hidrolase do éster do glicerol e age na presença da colipase e do íon cálcio.  A colipase é secretada de forma inativa e é ativada pela tripsina no lúmen, enquanto a lipase é secretada ativa, mas só atua na gordura emulsificada e na presença da colipase. Os fosfolipídeos são desesterificados pela fosfolipase A2, a qual também é secretada como zimogênio e é ativada pela tripsina no lúmen (Figura 33). As fosfolipases são denominadas de acordo com o local onde promovem a clivagem da molécula onde atuam.

Figura 33: Hidrólise dos fosfolipídeos. Observe que a hidrólise dos fosfolipídeos pela fosfolipase A2 (PL A2) ocorre na ligação éster de C2 do glicerol com o ácido graxo, liberando lisofosfolipideo + um ácido graxo (Fonte:  https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Phospholipase.jpg).

  Outra enzima lipolítica secretada pelo pâncreas é a hidrolase do éster do colesterol, a colesterol esterase. Esta enzima desesterifica o colesterol, rompendo sua ligação com o ácido graxo, mas pode atuar também desesterificando fosfolipídeos, vitaminas lipossolúveis e triacilgliceróis. A colesterol esterase atua também de forma reversível no interior do enterócito, reesterificando o colesterol. Uma enzima semelhante à colesterol esterase é produzida pela glândula mamária e secretada no leite materno. 

  Há lipases de origem bacteriana no intestino grosso, mas estas são pouco específicas e podem hidrolisar triacilgliceróis e fosfolipídeos. 

  Para ocorrer a absorção, os produtos da digestão dos lipídeos precisam ser transportados até a borda em escova dos enterócitos. Para isso, ácidos graxos (principalmente os de cadeia longa), monoacilglicerol, colesterol, lisofosfolipídeos e vitaminas lipossolúveis se agrupam no centro de micelas, as quais são formadas a partir dos sais biliares que, devido a sua característica anfipática, envolvem os lipídeos digeridos aumentando sua solubilidade no ambiente aquoso do lúmen intestinal.

     Para pensar e pesquisar: Esteatorreia é a eliminação de fezes gordurosas. Pense nas possíveis causas de encontrarmos lipídeos nas fezes.

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