Bioeletrogênese
Os seres vivos são dependentes de processos físicos e químicos, os quais garantem a vida das células e a saúde do organismo. Por essa razão, é importante conhecer as bases da física e da química e suas leis, pois estas vão determinar os mecanismos biológicos e a vida dos organismos. Além de participar das atividades intracelulares, esses processos permitem que as células emitam sinais e se comuniquem com outras células.
Os processos químicos envolvem inúmeras reações químicas, que serão responsáveis pela manutenção da vida das células e a consequente sobrevivência do organismo. Por exemplo, a digestão de nutrientes, a síntese de macromoléculas, o transporte de substâncias dentro e entre as células, a contração muscular, etc. Portanto, os processos químicos são essenciais para que as atividades biológicas se concretizem.
Dentre os processos físicos, temos a geração de sinais elétricos. A ação, movimento e geração de cargas elétricas em tecidos vivos constituem o que conhecemos como Bioeletrogênese (bio=vida, eletro=cargas, eletricidade; gênese= origem, gerar, produzir). Daí vem também o nome de fenômenos bioelétricos, e também estão incluídos aqui as correntes elétricas e os campos elétricos que ocorrem no organismo vivo. Todas as células apresentam fenômenos bioelétricos, especialmente relacionados com a membrana plasmática.
Para pensar e pesquisar: que outros processos físicos, além dos bioelétricos, estão envolvidos com a atividade biológica dos organismos vivos?
Como são gerados os fenômenos bioelétricos nas membranas celulares?
As células são a unidade estrutural e funcional dos organismos vivos. Todas as células são delimitadas por uma membrana, a qual separa os processos e reações químicas que ocorrem dentro da célula daqueles que ocorrem no meio extracelular. Essa membrana, a membrana plasmática, também é um isolante elétrico, uma vez que é constituída de lipídios que não conduzem a eletricidade. Os lipídios são isolantes pois não possuem, ou possuem muito poucos, grupos carregados para poder interagir com as cargas elétricas. Há fenômenos elétricos também em outras membranas da célula, como as mitocondriais, por exemplo, mas aqui vamos tratar apenas dos potenciais elétricos que ocorrem através da membrana plasmática.
A característica das membranas biológicas de serem isolantes elétricos, faz com que ela separe as cargas presentes no meio extracelular (LEC) das cargas do meio intracelular (LIC). Lembre-se que o citoplasma (LIC) e o LEC são meios aquosos. A água é polar, solubiliza várias substâncias polares e íons, os quais podem interagir por meio de suas cargas permitindo a condução da corrente elétrica em meio aquoso. Assim, LIC e LEC são condutores elétricos e a membrana plasmática é um isolante elétrico. Quando dois meios condutores (LIC e LEC) são separados por um isolante (chamado dielétrico), se forma um capacitor, ou seja, um “armazenador de cargas”, semelhante ao que acontece em uma pilha ou bateria. A membrana é bastante fina, aproximadamente 10 nm de espessura, o que permite que as cargas opostas sejam “atraídas” através da membrana (Figura 1). Estas cargas se atraem mas não se anulam pois estão separadas pela membrana, que é isolante elétrico. Quanto menor a distância entre as placas carregadas que são separadas pelo isolante, maior a capacidade de isolar cargas do capacitor. Essa capacidade é chamada de capacitância.
A B
Figura 1. A: A membrana plasmática é um isolante que separa as cargas presentes no meio intracelular das cargas do meio extracelular. B: Representação esquemática de um capacitor. (Fonte: Fisiologia em quadrinhos).
Você Sabia?
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As propriedades elétricas do nosso organismo permitem que se desenvolvam técnicas para conhecer o funcionamento de alguns órgãos, como o eletrocardiograma, o eletroencefalograma, eletromiografia, etc. Estes exames complementares mostram a atividade elétrica do coração, do sistema nervoso central e do músculo, respectivamente
Já se pode perceber, que as características estruturais da membrana são determinantes para impedir ou permitir a passagem de substâncias através dela, o que chamamos de permeabilidade da membrana. Ou seja, a facilidade com que as substâncias são transportadas de um lado a outro da membrana. As membranas celulares são seletivamente permeáveis, permitindo a passagem de algumas moléculas e de outras não. Vamos revisar brevemente essas características (Figura 2) e sua influência sobre o transporte de diferentes substâncias pela membrana, antes de tratarmos especificamente das cargas e do seu fluxo através das membranas.
Figura 2. Estrutura da membrana plasmática. Observe a presença de fosfolipídios, formando a bicamada lipídica, e das proteínas inseridas nessa camada lipídica. Note que os grupos fosfato (em azul) estão direcionados para o meio extracelular ou para o citosol. As proteínas podem estar associadas a carboidratos ou a lipídios, e podem ser periféricas ou transmembrana (Fonte: Pré-Fisiologia).
A membrana plasmática é um isolante elétrico devido a sua composição lipídica. Os fosfolipídios são anfipáticos e formam uma bicamada, com a parte lipídica (cadeia de ácidos graxos) voltada para o interior da membrana e a parte hidrofílica (grupos fosfato) voltada para os meios aquosos hidrofílicos, os meios intracelular e extracelular. A membrana é constituída de outros lipídios, como os glicolipídios, os esfingolipídios, o colesterol, entre outros, mas vamos considerar principalmente os fosfolipídios, uma vez que são abundantes e essenciais para determinar a permeabilidade da membrana. Obviamente, substâncias hidrofóbicas poderão passar por entre esses fosfolipídios, sem necessidade de nenhum transportador para isso, uma vez que possuem afinidade pelos lipídios e se difundem dependendo apenas do seu gradiente de concentração e da sua lipossolubilidade (Figura 3).
Figura 3: Difusão simples através da membrana plasmática, a favor do gradiente de concentração de um soluto hidrofóbico (Fonte: Pré-Fisiologia)
Isso é o que vemos acontecer com o transporte através de membranas biológicas de moléculas solúveis em lipídios, como hormônios esteroides, ácidos graxos, etc. Além disso, substâncias bem pequenas e apolares, sem carga, também podem atravessar a membrana por difusão simples, como o dióxido de carbono e o oxigênio. Como toda a difusão, sua velocidade será proporcional à diferença de concentração de cada lado da membrana, e a tendência é que essa diferença vá diminuindo até que deixe de existir. Quando as concentrações se igualarem dos dois lados, o fluxo resultante da molécula transportada cessa. Ou melhor, pode ocorrer algum fluxo de um lado a outro, mas como também pode ocorrer no sentido oposto, a resultante é zero (Figura 4).
Figura 4: Difusão simples através da membrana plasmática. Observe o fluxo de a para b a favor do gradiente de concentração ao longo do tempo (t) até que as concentrações se igualem e o fluxo resultante=zero 1. Soluto solúvel na membrana plasmática. 2. Membrana plasmática. (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:0305_Simple_Diffusion_Across_Plasma_Membrane_labeled.j pg).
Por outro lado, as substâncias hidrofílicas, que não possuem afinidade pelos lipídios, não poderão atravessar a membrana por difusão simples. Para as substâncias hidrofílicas, é preciso que as proteínas da membrana atuem para facilitar seu transporte.
As proteínas são um componente muito importante da membrana plasmática, uma vez que são responsáveis por grande parte das suas funções. Elas podem ter função estrutural, ligando-se a proteínas do citoesqueleto (Figura 5) ou participando da estrutura das junções celulares, por exemplo; podem atuar como receptores que reconhecem ligantes, como hormônios ou neurotransmissores, e ativar vias de sinalização intracelular; podem ter função enzimática, comunicação com outras células, entre outras funções. Uma dessas importantes funções das proteínas de membrana está o transporte de sustâncias pela membrana
As proteínas da membrana podem se distribuir atravessando toda a membrana, formando as proteínas transmembrana, ou se localizar apenas em uma face da membrana, constituindo as proteínas periféricas.
Figura 5. Estrutura da membrana plasmática. Além da bicamada de fosfolipídios, observe as proteínas do citoesqueleto, as periféricas e as transmembrana (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Vamos abordar aqui a função essencial das proteínas da membrana no transporte de substâncias orgânicas e inorgânicas para cada lado da membrana, uma vez que a única forma de uma substância hidrofílica atravessar a barreira hidrofóbica de uma membrana biológica é por meio de proteínas transmembrana, razão pela qual chamamos de transporte mediado.
O transporte mediado usa proteínas da membrana para facilitar o movimento de uma substância através da membrana, e pode ocorrer com gasto de energia do ATP ou sem ATP. O transporte que ocorre contra gradiente, precisa da energia do ATP e é chamado de transporte ativo. Quando o transporte se dá a favor do gradiente de concentração, apenas a energia da agitação aleatória das moléculas é suficiente para realizar o transporte. Quando ele não precisa de ATP, pois ocorre a favor do gradiente, o transporte é chamado de passivo. Nesta categoria, temos a difusão facilitada por meio de canais ou por carreadores, também chamados de transportadores (Figura 6). O transporte de glicose por meio de transportadores é um exemplo de difusão facilitada mediada por carreador. A difusão facilitada por canais se dá principalmente no transporte de íons, por canais iônicos, e no transporte da água, por canais de água (aquaporinas).
Figura 6. Transportes mediados a favor do gradiente de concentração (passivos). Observe o gradiente de concentração e o sentido do fluxo de cada substância transportada (Fonte: Pré-Fisiologia).
Observe que o transporte mediado não ocorre apenas para os solutos. A água também é transportada dessa forma, a favor de seu gradiente de concentração, no transporte chamado de osmose.
Para pensar e pesquisar: E se a molécula for muito grande para ser transportada pelo transporte mediado, como o caso das proteínas, qual a estratégia de transporte é usada?
Como já vimos anteriormente, a membrana não permite a passagem de íons, a menos que se torne permeável ao íon, ou seja, possua canais iônicos para este íon abertos. Portanto, a membrana funciona como um isolante devido a sua composição lipídica, enquanto os canais iônicos, formados pelas proteínas transmembrana, são os condutores da carga elétrica através da membrana da célula. Por isso, a quantidade de canais iônicos abertos na membrana determina a condutância elétrica da membrana, uma medida de sua permeabilidade. A condutância é o inverso da resistência elétrica, ou seja, a dificuldade à passagem de íons e moléculas com carga.
O fluxo de íons pela membrana, gera pequenas correntes iônicas que percorrem pouca distância, e a maior parte dos íons permanece sempre muito próximo à membrana, não interferindo na eletroneutralidade dos compartimentos.
A membrana plasmática armazena energia potencial elétrica nessa distribuição espacial dos íons e essa energia pode ser usada para o transporte de substâncias, geração de sinais elétricos, etc. Assim, os potenciais elétricos de membrana são gerados por essas diferenças de carga elétrica que ocorrem no espaço adjacente às superfícies interna e externa das membranas biológicas. Para entender os potenciais de membrana, precisamos conhecer a permeabilidade da membrana, quais componentes do meio intracelular e do extracelular possuem carga elétrica e como se dá o fluxo de cargas pela membrana.
Mas de onde vêm e para onde vão essas cargas?
Embora algumas moléculas orgânicas possuam carga, como alguns aminoácidos, grupos fosfato, proteínas, piruvato, etc, a maior parte das cargas que vão determinar os potenciais elétricos na célula são provenientes dos íons, devido a sua disponibilidade e mobilidade através da membrana. Ou seja, os íons são difusíveis, enquanto as moléculas orgânicas são nãodifusíveis. Lembre-se que os íons possuem carga, pois seus átomos ganharam ou perderam elétrons. Eles vão fazer o papel dos elétrons em movimento nos fios condutores de eletricidade que você estudou nas aulas de física.
Considerando que os íons são tão importantes para a geração dos potenciais elétricos, alguns fatores são indispensáveis para entendermos como se dá o movimento dos íons através da membrana e a geração das diferenças de potencial.
1. Qual a distribuição de íons nos meios intra e extracelular?
2. Como os íons passam pela membrana?
3. Como é a permeabilidade da membrana aos principais íons?
4. Qual a força motriz do fluxo de íons?
A distribuição desigual dos íons em solução nos dois lados da membrana é responsável por grande parte dessas diferenças de carga que geram os potenciais de membrana. Na Figura 7, está ilustrada a composição do LIC e do LEC, com a membrana plasmática funcionando como isolante elétrico, uma vez que não há transportadores que permitam o fluxo de íons.
Figura 7. Composição iônica do LIC e do LEC. LIC: líquido intracelular. LEC: líquido extracelular (Fonte: Pré-Fisiologia).
Observa-se que no líquido extracelular há predominantemente NaCl enquanto no intracelular (LIC) o cátion predominante é o íon K+ e os ânions são principalmente orgânicos, como as proteínas e os grupos fosfato. Não estão representados na ilustração os íons cálcio, que existem em concentrações mais altas no LEC do que no LIC, e outros componentes desses compartimentos que possuem carga elétrica.
Você Sabia?
O meio extracelular das nossas células tem uma composição muito parecida com o líquido que banhava as primeiras células que surgiram na evolução. Os organismos unicelulares surgiram no mar, onde a concentração de NaCl é alta. Ao longo de milhões de anos, até a nossa espécie, as células continuam sendo banhadas por um líquido rico em NaCl.
Essa distribuição desigual de íons de cada lado da membrana se relaciona também com o fluxo de íons pela membrana, que vamos revisar agora. Os íons passam pela membrana por meio de canais iônicos, quando há gradiente eletroquímico favorável. Ou seja, a favor de gradiente. Mais adiante vamos falar do transporte ativo realizado pela famosa bomba Na+K +ATPase.
Que tipos de canais iônicos existem?
Os canais iônicos são constituídos de proteínas transmembrana, as quais possuem uma organização espacial que forma um poro interno, por onde o íon poderá passar. A maior parte dos canais são seletivos, permitindo apenas a passagem do seu íon correspondente. A seletividade do canal vai ser dada pelo diâmetro e a carga interna do poro do canal, e pela carga e hidratação dos íons.
Os canais iônicos podem ser chamados de abertos ou fechados. Os canais denominados abertos, são também chamados de canais de vazamento ou canais passivos. Estes canais estão sempre abertos e permitem a passagem de íons específicos por difusão, a favor do gradiente eletroquímico, até que o gradiente deixe de existir. O gradiente eletroquímico é a força propulsora do fluxo passivo dos íons pelos canais de vazamento.
Para que os íons possam passar pela membrana é necessário que ela seja permeável ao íon, como ilustrado na Figura 8, que mostra a permeabilidade de uma célula em repouso. Ou seja, basicamente a membrana permite a passagem passiva do íon K+ por meio de canais de vazamento. O Na+ também entra na célula por canais de vazamento mas em quantidades muito pequenas, comparando com o fluxo do íon potássio, uma vez que o gradiente de concentração do íon sódio é 4 vezes menor do que o do potássio, e a permeabilidade da membrana é cerca de 25 vezes maior para o íon potássio do que para o íon sódio.
Figura 8. Permeabilidade da membrana de uma célula em repouso. Observe o fluxo do íon potássio a favor do seu gradiente de concentração, por canais de vazamento (Fonte: Pré-Fisiologia).
Há também os canais fechados, também chamados de canais ativos ou canais com portão, pois necessitam de um estímulo para abrir e permitir a passagem do íon (Figura 9). Os principais canais iônicos fechados são aqueles que dependem de um sinal químico chamados de canais dependentes de ligante e os que dependem de sinal elétrico, chamados de dependentes de voltagem. Estes canais abrem-se muito brevemente e voltam a fechar, até que outro estímulo promova sua abertura novamente. Essa abertura e fechamento de canais são alterações transitórias da permeabilidade da membrana que são usadas pela célula para produzir sinais elétricos e para realizar diversas atividades celulares. Os neurotransmissores são os principais ligantes dos canais que dependem de um sinal químico, e os potenciais de membrana são os sinais elétricos, as alterações de voltagem que causarão a abertura dos canais dependentes de voltagem. Não vamos abordar neste texto os canais que são dependentes de estímulos sensoriais, os quais são abertos em razão de estímulos sensoriais, como os mecânicos (pressão, estiramento), químicos (odor, sabor), térmicos (frio ou calor) e luminosos (visão).
Figura 9. Tipos de canais iônicos (Fonte: Pré-Fisiologia)
Qual a força propulsora desse movimento dos íons?
Todos os átomos e moléculas apresentam movimento aleatório, chamado de agitação térmica. Isso gera a força propulsora para o movimento quando estamos a favor do gradiente eletroquímico (movimento Browniano). Por isso se diz que o transporte é passivo, pois é energeticamente favorável, e não requer energia adicional do ATP celular. Quando o movimento dos íons é contra gradiente eletroquímico, então será necessário usar transportadores que utilizem a energia do ATP para fazer esse transporte. Aqui entram em ação as ATPases, ou “bombas”, que são enzimas capazes de hidrolisar o ATP, mobilizando energia para o transporte. Lembre-se que o ATP armazena energia química nas suas ligações fosfato. As ATPases são responsáveis pelo transporte ativo primário, como dos íons cálcio e hidrogênio, mas também podem transportar mais de um íon, como a Na+K +ATPase e outros trocadores de antiporte (Figura 10).
Figura 10. Bomba Na+K +ATPase. Transporte ativo, contra gradiente eletroquímico do Na+ e do K+ . Não está representado na ilustração o caráter eletrogênico desta bomba, uma vez que ela transporta três Na+ para fora da célula e dois K+ para dentro (Fonte: Pré-Fisiologia).
Em algumas células, a energia de uma ATPase pode gerar gradiente de íons que serão usados para outros transportes, chamados de transporte ativo secundário. A bomba Na+K +ATPase é responsável por grande parte desses casos, uma vez que gera gradiente do íon sódio, e este gradiente é usado como força motriz para carregar outro íon ou substância, como o que ocorre no transporte de glicose nos túbulos renais e no enterócito. Todas as células possuem essa bomba em funcionamento e o gasto de ATP para mantê-la funcionando pode consumir grande parte do ATP produzido na célula, dependendo do tecido (Figura 11).
Figura 11: A Na+K +ATPase transporta íons sódio e íons potássio contra seus gradientes de concentração com gasto de ATP (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sodium-potassium_pump-ku.svg#/media/File:Scheme_sodium-potassium_pump-pt.svg By Pwoli - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=121601299).
A bomba Na+K +ATPase carrega os íons sódio e potássio contra seus gradientes eletroquímicos, portanto, o íon sódio é bombeado para fora da célula e o íon potássio para dentro, conforme se pode ver na Figura 11. Apesar destes íons possuírem a mesma carga, +1, a bomba é eletrogênica, pois transporta 3 íons sódio para o LEC e 2 íons potássio para o LIC (Figura 12). Apesar de ser eletrogênica, sua maior contribuição para o potencial de membrana é seu papel no restabelecimento dos gradientes de Na+ e de K + . Outros transportadores podem ser eletroneutros, desde que transportem o mesmo número de cargas para cada lado da membrana.
Figura 12: A Na+K +ATPase é eletrogênica. Observe que ela carrega 3 íons sódio para fora e 2 íons potássio para dentro. Dragereiwit: proteína transportadora; K+ ionen: íon potássio; Na+ ionen: íon sódio. (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:NaK_Ion_Channel.gif).
Já vimos que os íons podem se difundir pela membrana por canais, a favor de seus gradientes eletroquímicos, também contribuindo para a distribuição desigual de cargas.
Mas o que é gradiente eletroquímico?
A palavra gradiente significa a variação de uma grandeza em uma direção, diferentes tons de uma cor, graduação de determinado fator e outros significados usados em contextos da matemática e da física. Quando consideramos a biologia e a fisiologia, gradiente significa uma diferença entre dois pontos. Podemos pensar em um gradiente osmótico entre dois compartimentos ou duas soluções, um gradiente de temperatura entre duas partes do corpo, ou um gradiente de concentração entre os espaços intra e extracelular, por exemplo. O gradiente de concentração se aplica a todas as substâncias e também pode ser chamado de gradiente químico, pois vai quantificar a diferença entre as concentrações de uma substância química em dois compartimentos. Observe na Figura 13, o gradiente de concentração dos principais íons distribuídos de cada lado da membrana plasmática.
Figura 13. Gradiente de concentração dos principais íons (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Membrane_potential_ions_en.svg).
No contexto deste texto, em que estamos estudando os potenciais elétricos através da membrana plasmática, vamos sempre considerar os meios intra e extracelular e as diferenças de concentração dos íons nesses espaços: LIC e LEC. Como os potenciais são diferenças de carga, os íons são relevantes para essas diferenças, porém não é apenas a diferença de concentração dos íons que vai determinar o fluxo dos íons pela membrana. Precisamos levar em consideração as cargas desses íons e a diferença de cargas através da membrana plasmática. Este gradiente será chamado de gradiente elétrico, e vai ser importante para determinar o sentido do fluxo dos íons movidos pela atração ou repulsão entre cargas elétricas. Lembre-se que cargas iguais se repelem e cargas opostas se atraem (Figura 14).
Figura 14. Atração e repulsão entre cargas elétricas (gradiente elétrico). Observe que cargas iguais se repelem e cargas contrárias se atraem. (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cargas_electricas.png).
Assim, o gradiente eletroquímico leva em consideração as diferenças de concentração e as diferenças de cargas dos íons entre os compartimentos LIC e LEC. Muitas vezes o gradiente de concentração pode ser em um sentido e o gradiente elétrico em outro. Considerando que os gradientes são forças que movem os íons, a resultante dessas duas forças vai determinar o sentido do fluxo passivo de cada íon (Figura 15).
Figura 15. Gradiente de concentração e gradiente elétrico. Observe que o gradiente elétrico atrái o íon de carga positiva para o lado citoplasmático da membrana onde há concentração de cargas negativas (Fonte: Pré-Fisiologia).
Assim, já ficou claro que estamos nos referindo a cargas e suas modificações através da membrana plasmática. Ou seja, essas variações das cargas são chamadas de potenciais de membrana, pois ocorrem através da membrana, retratam as variações das cargas que ocorrem de cada lado da membrana plasmática. É importante lembrar que esses fenômenos elétricos ocorrem apenas no espaço imediatamente adjacente à membrana (±1µm), sendo que os espaços intracelular e extracelular como um todo são eletroneutros. Isto é, em cada um desses compartimentos, existe o mesmo número de cargas positivas e cargas negativas, sendo o somatório de cargas igual a zero (Figura 16). Assim, tanto o LIC quanto o LEC são ambientes isoelétricos, pois apresentam um equilíbrio elétrico. No entanto, ao se aproximar da membrana da célula, verifica-se que esse equilíbrio desaparece. O somatório de cargas nessa região, ao longo de sua superfície externa e interna é diferente de zero.
Figura 16. Eletroneutralidade nos compartimentos e diferenças de cargas nos espaços adjacentes à membrana (Fonte: Aprendendo Fisiologia).
Estando a célula em repouso ou não, pode-se afirmar que praticamente sempre existe alguma diferença na distribuição de cargas iônicas, mesmo que essa distribuição varie entre um estado e outro. Apesar disso, o número de cargas separadas pela membrana é uma fração muito pequena do total de cargas, de modo que a eletroneutralidade não chega a ser alterada, embora seja responsável pelos potenciais de membrana. Por exemplo, o movimento do íon K+ necessário para levar o potencial da membrana de 0 a -80mV envolve o fluxo de 0,00001 mM de sua concentração de 100mM. Ou seja, o fluxo de íons suficiente para modificar o potencial elétrico gera uma alteração da concentração tão pequena que não é mensurável.
Mas por que chamamos essa diferença de cargas de potencial?
Chamamos de potencial elétrico devido à energia potencial, ou seja, a energia armazenada na separação de cargas através da membrana plasmática, capaz de realizar trabalho. Neste caso, o trabalho é gerado quando ocorre o fluxo de cargas. O movimento de cargas é o que chamamos de corrente elétrica. O potencial elétrico é, portanto, a força gerada no campo elétrico dessas cargas. Ou seja, a energia necessária para mover uma carga elétrica em um campo elétrico (força eletromotriz).
Do mesmo modo, usamos a energia potencial armazenada na água represada ou levada até o alto de uma montanha para gerar energia elétrica quando a água flui por uma turbina, puxada para baixo pela força da gravidade (energia potencial gravitacional, neste caso). O potencial químico é a força difusional gerada pela diferença de concentração, ou gradiente químico, que também caracteriza energia potencial, uma vez que a energia é armazenada no gradiente de concentração. Quando essas moléculas começam a se mover a favor de seu gradiente de concentração, elas liberam energia que pode ser usada para fazer trabalho. Assim, a energia potencial se transforma em energia cinética quando ocorre o movimento, seja de cargas elétricas, água represada ou substâncias químicas.
Para pensar e pesquisar: Se você puxar uma mola, haverá acúmulo de energia potencial. Que energia potencial é essa? O que acontece quando você solta a mola?